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Caetano 68



Que maravilhoso país o nosso, onde se pode contratar quarenta músicos para tocar um uníssono.
(Miles Davis, durante uma gravação)

Antes havia Orlando Silva & flautas e até mesmo no meio do meio dia. Antes havia os prados e os bosques na gravura dos meus olhos. Antes de ontem o céu estava muito azul e eu e ela passamos por baixo desse céu, ao mesmo tempo com medo dos cachorros e sem muita pressa de chegar do lado de lá. Do lado de cá não resta quase ninguém. Apenas os sapatos polidos refletem os automóveis que, por sua vez, polidos, refletem os sapatos assim per omnia até que (por absoluta falta de vento) tudo sobe num redemoinho leve, me deixando entrever um resto de rosto ou outro, pedaços, amém. Marina sabe a história do pelicano etc. etc. o peito aberto e rasgado etc. etc. mas que nada: quando a gente não tem nenhuma necessidade de ir para os States não há mesmo mais esperança. Eu gostaria de fazer uma canção de protestos de estima e consideração, mas essa língua portuguesa me deixa rouco. Os acordes dissonantes já não bastam para cobrir nossas vergonhas, nossa nudez transatlântica. E, no entanto, Ele é um gênio: quem ousaria dedicar este disco a João Gilberto? Quantos anos você tem? Como é que você se chama, quando é que você me ama, onde é que vamos morar? Os automóveis parecem voar, os automóveis parecem voar por cima (mas mais alto que o Caravelle) dos telhados azuis de Lisboa, dos teus olhos, dos mais incríveis umbigos de todas as mulheres em transe, dos teus cabelos cortados mais curtos que os meus, meu amor, porque eu não quero, porque eu não devo explicar absolutamente nada.

Caetano Veloso

P.S.: Gil, hoje não tem sopa na varanda de Maria.


*

Do primeiro solo do Caetano.

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