RONALDOEVANGELISTA


Sing, sing, sing

Quinta-feira passada morreu, aos 87 anos, uma das mais brilhantes e particulares cantoras de jazz. Pouco conhecida, mas amada intensamente por quem a ouvia, Anita O'Day tinha histórias pra contar. Cantou em big bands, fazia bebop antes do bebop, era a melhor improvisadora de scat singing de todos os tempos, começou a carreira em uns campeonatos de dança malucos e era absolutamente rock'n'roll em sua personalidade. Billie Holiday era puta e apanhava dos amantes, Chet Baker era viciado em heroína e perdeu todos os dentes em uma briga com traficantes, mas Anita deixava todos no chinelo no quesito loucura.



Em 2004 eu trabalhava na revista Jazz+ e sugeri por lá: que tal uma entrevista com a Anita O'Day? Todo mundo animado com a idéia, lá fui eu caçar a mulher. Descobri o fone do agente dela, Robbie, e consegui marcar uma entrevista. No dia e hora marcados, liguei pra ela e já percebi o nível de anarquia. O diálogo seguiu mais ou menos assim:

Can I please talk to Mrs. Anita O'Day?

This is she.

Hello, Anita.

Hello who?

My name is Ronaldo, I'm from a jazz magazine in Brazil.

Oh?

Robbie gave me this number. He told me to call at this hour to talk to you.

Oh? And about what time?

He told me to call at eleven o'clock.

And what time is it now?

Isn't it eleven o'clock?

I'm looking at a clock, but it's upside down. Do you wanna come over and do what?

I'm in Brazil, I want to talk to you by phone.

Oh, boy.

You don't like phone interviews?

Why don't you just come over?

I can't, I'm in Brazil. It's a little too far.

Yeah. Well, I'm a terrible talker, specially on the telephone.

Depois disso, o papo continou ainda mais maluco. Ela negava ou desconhecia coisas completamente óbvias e notórias na história dela, como o fato dela ter gravado - mais de uma vez - músicas de Tom Jobim ou ter sido a primeira artista a lançar um disco pela gravadora Verve, de Norman Granz, ou um caso corrente de que ela não teria uma úvula (aquela "campainha" na garganta) e por isso cantaria com sua voz rouca e sem vibrato. Em alguns momentos, cheguei a duvidar que estivesse realmente falando com Anita O'Day, imaginando que talvez tivesse discado um número errado e uma maluca qualquer tivesse atendido e resolvido tirar um barato da minha cara, mas aí ela citava alguma coisa bem específica e eu percebia que a maluca que estava tirando um barato da minha cara era ela própria.

No fim, foi uma das entrevistas mais absurdas e divertidas que já fiz, e uma das que mais ficaram marcadas na memória. E foi uma vez que percebi claramente que Anita era um desses artistas que são como forças da natureza: você não tenta encaixá-los na sua lógica, você entra no mundo deles.

Tchau, Anita. Obrigado pelos discos.

Tea For Two e Sweet Georgia Brown, do filme Jazz on a Summer's day:



E a íntegra do texto que foi publicado na edição seis da Jazz+.

Gênio Indomável
Anita O'Day sobreviveu a sua própria vida. Além de ser uma das melhores
cantoras da história do jazz, Anita é uma lenda também por sua
personalidade incontrolável e sua inacreditável história de vida. Sua
voz sempre conseguiu ser ao mesmo tempo sofrida e sensual, tecnicamente
perfeita e ousada. Usando a voz como instrumento para improvisações,
foi uma das musicistas mais perfeitas do bebop. Usando seu tom rouco e
cool como válvula de escape, foi a cantora mais emocionante de sua
época. Inadvertidamente, foi também sedutora ao extremo, por conquistar
os ouvintes de ambos os sexos com sua personalidade irresistível.

Começou ainda nos anos 40, cantando com as orquestras de Stan Kenton e Gene
Krupa, onde fazia seus lendários duetos com o trompetista Roy Eldridge.
Em 1956 estreou em grande estilo a gravadora Verve, de Norman Granz, e
ao longo da década de 50 e 60 lançou dezenas de elepês na gravadora. Em
1969 seu duradouro vício em heroína fez com que sofresse uma overdose
quase fatal, o que a fez passar por uma sofrida mas necessária
reabilitação. Mas não de todo, é claro, porque afinal estamos falando
de Anita O'Day. Saiu a heroína, entraram doses pesadas de uísque.
Incrível pensar que a cantora que viveu a vida mais intensamente e que
por tantas passou continua por aí, mostrando sua música a gerações que
nem sonhavam nascer quando Anita fazia sucesso.

Mas nenhuma de
suas qualidades impediu o arranjador Buddy Bregman, que trabalhou com
Anita em seus primeiros discos, de descrevê-la como "uma verdadeira
maluca" e "esquisita demais". Em suas reminiscências, publicadas no seu website pessoal,
Bregman relembra a primeira vez que a viu cantando ao vivo: "Eu odiava
o jeito que ela cantava. Fui ver uma apresentação sua e ela cantou o
show inteiro de costas para o público. Eu pensei 'nossa, isso é muito
esquisito'. Eu nem imaginava que isso poderia ter algo a ver com as
drogas, heroína, cocaína. Eu nem conhecia essas palavras."

Anita
foi sempre a exata personificação do músico de jazz: rebelde, drogada,
difícil de lidar, apaixonante e genial. Nunca hesitou, nunca teve medo,
nunca perdeu tempo com nada que não lhe interessasse. Como jornalistas,
por exemplo. Na entrevista que deu à Jazz+, Anita falou pouco, mas
intensamente. Com voz preguiçosa, mas ácida. Com bom humor, mas com sua
rabugice habitual. Extremamente lúcida, mas sem paciência. Enfim, com
sua personalidade a mil. Durante o divertido bate-papo, por exemplo,
disse coisas como "Não sei que horas são. Estou olhando para um relógio
aqui, mas ele está de ponta cabeça" e "Não gosto de dar entrevistas,
meu agente me obriga a fazê-las".

Às vesperas de completar 85
anos, Anita continua se apresentando em pequenos clubes em Nova Iorque
e prepara novo disco, que deve ser lançado no começo de 2005 junto com
um documentário sobre sua vida. Uma nova palavra precisa ser inventada
para descrever a voz e a interpretação de Anita, porque suas qualidades
são tantas, e tão únicas, que os adjetivos de que dispomos não são
suficientes. Triste de quem ainda não viveu a experiência Anita O'Day.

Você começou dançando, antes de cantar, certo?

Eu
comecei em certas maratonas de dança, mas não era dança de verdade.
Quem andava mais ganhava. Eu não dançava e nem cantava ainda, apenas
andava e andava até ganhar. Eu fazia isso pelo dinheiro, e ganhava
dinheiro. Depois eu parei e comecei a cantar com o Gene Krupa.

E você cantou também com outras orquestras, não é?

Sim,
foi assim que aconteceu. O começo foi ali, com Gene Krupa, Stan Kenton,
Woody Hermann e Benny Goodman. Nós fizemos muitas coisas boas. Todos
eram ótimos, eu tentava fazer o melhor possível com cada um.

As orquestras influenciaram o seu estilo?

Ah,
todos eles fizeram algo por mim, sabe? Mas eu simplesmente não repito
mais nada. Era apenas algo que eu usava quando estava ali, algo que eu
fiz daquela vez. Mas o que eu fiz depois, e o que eu faço hoje, já é
algo diferente. As idéias estão no ar, vou as pegando, às vezes até
posso acabar sem querer fazendo algo que já fiz.

Então o seu estilo é algo interior, não é algo que você tenha que praticar e treinar, é algo natural para você.

Claro, É isso. É por isso que eu ainda estou por aqui. Quando chega a minha vez, eu faço aquilo aquela vez e isso é o que sai.

Alguma das bandas era sua favorita?

Não.
Eu gostava muito de uma canção, "Thanks For The Boogie Ride", que eu
gravei com uma das bandas, mas tinha que cantar toda vez que me
apresentava, em todos os lugares que ia, com todas as bandas com quem
cantava. Hoje em dia nem me lembro qual banda era qual.

Essa fase foi importante para sua carreira solo?

Eu
gostei muito dessa época, dessa parte da minha experiência. As big
bands me ajudaram muito. Eu usei muito do que aprendi ali depois, nas
formações menores. Eu passei bons tempos ao lado de Roy Eldridge,
quando cantávamos juntos. O Krupa era muito bom. Quanto ao Stan Kenton,
não posso dizer nada, nunca soube muito da vida dele. Posso dizer que o
Gene Krupa, o Stan Kenton e o Roy Eldridge foram as pessoas mais
importantes da minha carreira.

Mas você não ouve mais os antigos discos dessa época?

Não, nunca mais ouvi.

Você ainda se lembra das músicas, tem todas na cabeça?

Bem, não na minha cabeça. Minha cabeça está aberta para o que está surgindo agora.

O que você tem tocado ultimamente? Standards americanos?

É, coisas assim.

Alguma música favorita?

Todas são minhas favoritas. (risos) Me divirto com todas.

Depois
que você saiu em carreira solo, gravou com muita gente, como Oscar
Peterson, Cal Tjader e Billy May. Boas lembranças, algum favorito?


Não, comigo não funciona assim. Eles são todos ótimos, e eu estava sempre dando o melhor de mim.

Quando
você parou de cantar com big bands e começou sua carreira solo, você
acha que começou a ter outras influências, como o bebop?


Bem, eu apenas tentava me adaptar ao que eu achava que tinha mais emoção na época. Só isso.

Você estava incorporando o que estava ao redor.

Exato.

Você tem boas lembranças de Norman Granz?

Norman
Granz... Ele era... da gravadora? Eu nunca fiz nada com Norman Granz.
Digo, eu não fazia nada, as pessoas que me agenciavam é que lidavam com
ele. Eu não o reconheceria se o visse.

Eu imaginei que tivesse tido algum tipo de relacionamento com ele.

Não. Eu nunca tive nenhum tipo de relacionamento com ninguém, exceto minha música.

Com ninguém, nunca?

Não.

Então a música é a única coisa que importa na sua vida?

É isso aí.

Não sei se você se lembra disso, mas o seu primeiro álbum foi também o primeiro do catálogo da Verve, gravadora de Norman Granz.


Você
sabe o quê? A pessoa que me agenciava na época foi quem comemorou. Eu
apenas disse, "bom, vamos em frente, já terminei esse álbum".

Algumas pessoas comentam que você talvez tivesse ciúme de Ella Fitzgerald, porque ela fez mais sucesso na Verve.

Ciúme
dela, como assim?! Ah, não viaja, esquece isso. Ela era uma boa
cantora, tinha o estilo dela. Ela trabalhou muito tempo com uma banda,
treinou muito, fez muita coisa diferente, por isso ela esteve por aí
tanto tempo.

Então você gostava do estilo dela e a respeitava?

Eu a respeitava, mas nem me lembro de como ela cantava. Todo mundo parece gostar dela.

Muita gente gosta de você também, você não acha que influencia muita gente hoje?

Não...

Você gosta do seu jeito de cantar, ouve seus próprios discos?

Eu
costumava ouvir meus discos, para descobrir o que eu podia fazer e o
que eu tinha feito, mas isso já passou. Agora eu só sento e toco, sem
me preocupar. Eu toco o que está ali.

Você escuta outras pessoas cantando?

Não.
Eu costumava ouvir, mas só para ver o que eles estavam fazendo, não
para copiar o estilo. Eu tenho meu próprio jeito de cantar.

Você se dava bem com as outras cantoras na época?

Claro.
Sabe como é, você canta, eu canto, tudo ótimo. É como com os músicos.
Eu gosto de cantores, eles são legais. Eu gosto de ser uma cantora eu
mesmo.

Mas você gosta de cantoras como Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Sarah Vaughan?

(riso
irônico) Ah, acho que sim. Se as pessoas gastam dinheiro com elas, elas
são boas. Eu pessoalmente nunca me inspirei em ninguém. Ninguém
observei ninguém para assimilar algo. Eu andava por aí, via todas, mas
nunca peguei nada para mim ou quis copiar algo delas. Isso nunca
funcionou para mim. Eu apenas tocava o que me vinha à cabeça à época.

É famosa a história de que você sempre cantou sem vibrato porque não tem uma úvula.

Úvula? O que é uma "úrvula"?

Aquela coisa na garganta.

Ah,
sim. Bem, talvez seja isso que me faz fazer o que faço. Eu na verdade
não presto a menor atenção a isso. Quando chega a minha vez de cantar
eu apenas faço o melhor que acho que posso fazer.

Você acha que você foi a primeira a cantar com a voz mais cool? Depois isso se tornou mais comum, mas na época era raro...

Bem, se eu fazia isso, acho que eu fui. Eu simplesmente não sei, Essas coisas mudam, sabe? Eu faço o que sinto naquele dia.

Mas você não acha que você tem alguma importância na história do jazz?

Não, eu apenas faço o que faço.

Algumas
pessoas dizem que a June Christy e a Chris Connor começaram cantando no
seu estilo. Você acha que foi uma influência para elas?


Ah, não, não. Acho que não. Elas tinham estilo próprio. Quando as ouvi elas simplesmente tinham algo a dizer e diziam.

Você se lembra de se apresentar com a Blossom Dearie no carnegie Hall nos anos 70?

Blossom Dearie?

Não se lembra de Blossom Dearie?

Eu conheço essas palavras. (risos)

Você conhece essas cantoras mais novas, como Norah Jones e Diana Krall?

Não. Os nomes não me soam familiares.

Elas são bem famosas, imaginei que você as conhecesse.

(risos) Não, não conheço.

Você tem alguma lembrança de quando tocou no Brasil, em 1984?

Eu toquei no Brasil? Não me lembro disso. Lembro de ter tocado no Japão, não lembro do Brasil.

Chegou até a ser lançado um álbum por aqui com seu show.

Ah, é? Bom, então evidentemente é verdade que toquei aí. Só lembro de ter tocado no Japão. Eu adorei tocar lá.

Quando você tocou no Japão?

Ah, meu Deus, não sei. Há muito tempo.

Mas você gosta de música brasileira, certo?

Não posso dizer, não me lembro.

Você não se lembra de "Garota de Ipanema", João Gilberto, Stan Getz?

Não. Só me lembro de ter tocado no Japão... (risos)

Nem de Tom Jobim você se lembra? Isso é curioso, você chegou a gravar uma composição dele, "Wave".

Não.

O que mais eu posso te perguntar?

Não muita coisa. Eu não tenho muito pra dizer.

Você não gosta, não se sente confortável conversando sobre sua vida, sua música?

Na verdade não. Meu agente me faz fazer isso. Ele diz, "vamos lá, você pode, faça isso", e eu digo, "está bem, está bem".

Então
só mais uma pergunta. São comuns as histórias de músicos que acabaram
com suas vidas nas drogas, mas você está aí até hoje, cantando e tudo
mais. Por que você acha que isso aconteceu? Você se arrepende de algo?


Agora
você me pegou. Eu não me lembro de nada. Você está falando de coisas em
que nunca nem pensei. O que eu posso te falar sobre isso?

Você apenas tocava o que tocava e se as pessoas gostassem de ouvir, é isso?

Exato.
Eu ia pro estúdio, havia um microfone na minha frente e a banda ali
atrás, eles começavam a tocar o arranjo e eu fazia algo sobre isso. As
faixas estavam gravadas e eu ia para casar tomar uma... xícara de chá.
Todo mundo quer conversar comigo, eles acham que eu vou ter algo muito
interessante pra dizer, mas eu nunca sei o que dizer. Todo mundo espera
muito de mim. Bom, não tenho nada pra falar, mas posso te cantar uma
música. Só que tem que ser uma música boa.

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1 Responses to “Sing, sing, sing”

  1. # Blogger Ramiro

    Meu deus, isso é uma pérola!  

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