RONALDOEVANGELISTA


Coisas



Atenção, todos os amigos que disseram que queriam ver a big band Coisa Fina, dedicada à obra de Moacir Santos: hoje é a última terça em que eles tocam lá no Cedo e Sentado, do Studio SP. Quem conhece o Moacir Santos já sabe, é coisa de outro mundo. Afrojazz Ellingtoniano, nordestino, sofisticado, delicioso, sobrenatural de tão fantástico. E o Coisa Fina sabe. Sente o clima no vídeo aí em cima.



Uma das maiores honras da minha vida foi ter tido a oportunidade de ouvir a história do Moacir Santos contada ali, em primeira pessoa. Foi em 2005, alguns meses antes de sua morte. Eu colaborava com a revista Bizz, na época editada por Ricardo Alexandre, para quem fiz a pauta. Fui encontrar Moacir, de passagem pelo Brasil e por São Paulo, em um hotel e ali conversamos por algumas horas - eu, ele e Eugênio Vieira, que fez algumas fotos lindíssimas, que podem ser vistas aqui ou ao longo desse post. Foi uma tarde incrível pela conversa, pela delicadeza, pela sabedoria, pela humildade de Moacir.



Eu já era apaixonado por ele há alguns anos: nosso primeiro Coisas pirata a gente nunca esquece. Junto com o Tim Maia Racional, o Coisas era, até 2005 (quando foi relançado pelo selo MP,B), provavelmente o disco brasileiro mais lendário e pirateado nas internas. O disco original foi lançado em 1965 pela Forma - e uma cópia em bom estado do LP passa fácil dos mil reais no mercado negro dos colecionadores. E quer saber? Se o valor estiver ligado à qualidade do disco, está barato.

Felizmente, hoje em dia qualquer um pode conseguir uma cópia com a facilidade de um clique, aqui.

Abaixo, a entrevista, quase como publicada na Bizz.



O maior clichê em qualquer texto sobre Moacir Santos é começar citando o que diz sobre ele Vinicius de Moraes, na parte recitada da música "Samba da Bênção": "A bênção, maestro Moacir Santos, que não és um só, mas tantos".

É claro que nós não seríamos a exceção, mas talvez agora seja um bom momento para lembrar que a maior parte das matérias lidas por aí não vai muito além do clichê. Moacir Santos tem uma das histórias mais fascinantes de qualquer músico, de qualquer estilo, de qualquer época - mas até hoje muito pouco contada.

O que se sabe, em qualquer texto: foi professor de músicos como Nara Leão, Baden Powell, Sérgio Mendes, Roberto Menescal, Carlos Lyra; seu álbum de 1965, "Coisas", é um dos mais geniais e desconhecidos da música brasileira; em fins dos anos 60 trocou o Brasil pelos EUA e, de lambuja, assinou com a maior gravadora de jazz do mundo, a Blue Note, que lançou três álbuns seus.

O que não se comenta com tanta freqüência: Moacir veio do sertão nordestino e tem história de vida que parece ter sido pura criação da cabeça de Guimarães Rosa. Acompanhando sua história, é fácil entender a riqueza de sua música, ao mesmo tempo simples e complexa, uma espécie de afro-jazz brasileiro e camerístico, tão sofisticado quanto irresistível por sua musicalidade imediata.

Em 1997 sofreu um derrame que lhe paralisou a mão direita, entre outras conseqüências. Com sua história de vida e seu constante espírito leve, não parece ser algo tão trágico. Afinal, coisas boas é que não faltam em sua vida atualmente.

O desconhecimento a respeito de sua obra começou a ser diminuído em 2001, quando os músicos Mario Adnet e Zé Nogueira produziram o CD duplo Ouro Negro, com regravações - a partir dos arranjos originais - de músicas de toda sua carreira. Depois disso, vieram o relançamento em CD do clássico "Coisas", livros de partitura do seu cancioneiro, e, em 2005, um novo álbum de canções inéditas, "Choros & Alegria", apenas o sexto de sua carreira. Agora, às vésperas de completar 80 anos (em 26 de julho), Moacir se prepara para ver relançados em CD, pela primeira vez, seus álbuns americanos.

Durante algumas horas em um lobby de hotel em São Paulo e mais algum tempo por telefone de sua casa em Los Angeles, Moacir conversou conosco falando devagar, como um conta-gotas de histórias incríveis, com longas lembranças que se confundem entre si e emocionam - mais de uma vez, lágrimas vieram aos seus olhos ao lembrar de algum detalhe até então escondido na memória.

Com seu jeito pessoal de falar, misturando narrativa e música, chamando o pianista Horace Silver de "Horácio Silva", despejando doçura, Moacir adora contar histórias. A cada pergunta, repetia, satisfeito: "Ah, isso é outra história. Vou contar, hein?"

Então, senta, que agora Moacir vai contar história.


Qual a sua primeira lembrança musical?

Sinto necessidade de contar uma história. Quando mamãe morreu, eu tinha já uns três anos, mais ou menos. Me lembro disso. Eu estava no quintal da casa, batendo latas, imitando a banda da cidade. Eu tinha uma bandinha. Uns cinco meninos, tudo nuzinho. Por duas razões. Uma, porque lá é muito quente. A outra, porque a gente era pobre. Então, estava batendo lata e uma pessoa disse, "Moacir, venha cá pra você ver sua mãe". Eu não sabia o que era morte, mas eu cheguei e senti que estava faltando alguma coisa nela. Aí, foi parede do quarto e chorar. E eu estava batendo lata. Isso aí é o pivô da história, isso aí eu lembro. Muito digno de mencionar.

Vocês garotos já tinham algum instrumento?

O meu instrumento era lata, eu ficava batendo lata de goiaba. Tatatata, tocando. Eu tenho isso pra mim que eu já nasci músico, nasci com a música. Eu era também diretorzinho dos meninos, da banda, quando a gente era criança, lá em Flores, cidadezinha que eu morava, que tinha seis ruas principais, agora deve ter oito ou nove.

E depois que sua mãe morreu?

Cada família de Flores apanhou um dos meninos, uma das crianças dos filhos de mamãe. De Julita, que era minha mãe. Éramos cinco. Três meninas e dois homens. Eu fui tomado pra uma família, me adotaram, e a casa era muito perto da sala do ensaio da Banda Marcial que tinha. Não pode ter sido uma banda fenomenal não, muito resumida. Mas tocava na igreja. Então eu imitava, como criança, à medida que eu via. E houve uma coisa muito importante na minha vida: quando eu tinha mais ou menos nove a dez anos, fui assistir um ensaio. Eu entrei lá e não me resistia a coisa de mexer, de tocar no instrumento, encostar. Coisa de criança mesmo. Aí um dos rapazes da banda, ele me repreendeu. "Não mexe aí não, ô, moleque." Ao invés de ficar ressentido e deixar de assistir à banda, eu continuei, próximo ensaio eu estava lá. Então, alguém sugeriu que escolhêssemos Moacir para tomar conta dos instrumentos da banda quando eles tinham um breakzinho, um café, fumar, alguma coisa. Aí, pronto, eu aprendi todos os instrumentos. Porque vigia era diferente, aí eu posso mexer, tocar, aí eu aprendi todos.

Você tocava todos os instrumentos? Ia lá e tocava um pouquinho de cada?

É, porque eu era vigia, tocava. Aprendi tudo. Eu tocava trompete, violão, bateria...

E quando você passou a tocar o seu primeiro instrumento?

Isso é uma passagem com o Mestre Paixão. A Brigada de Pernambuco sempre expediu um músico do interior pra tratar da educação musical das crianças. Então era o Mestre Paixão, tocava trompete, era moreno, alto. Então uma vez eu fui na casa dele de manhã, ele estava botando uma gravata, pra ir pra missa, e falei com ele. "Mestre, o senhor podia me dar um instrumento pra eu tocar?" Eu estava ficando muito cansado de teoria, eu queria instrumento. Aí eu peguei um trompete - que não era trompete, era piston, que é menor do que o trompete - e "dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, si, lá, sooool, lá, si, dooó". O grave e agudo! Aí o mestre olhou pra mim e: "humpf". Mas você vai tocar clarinete, garoto. Ele disse isso pra mim, eu não esqueço nunca. Mas tanto faz. O trompete, o clarinete.

Por que ele disse isso?

Ah, agora ele já morreu, não pode dizer. Eu penso que talvez se eu fosse tocar trompete, ia tomar o lugar dele. Não sei se precisava de clarinete na banda. Depois o Mestre Paixão ficou cuidando de mim por um tempo, quando eu era adolescente.

Cuidando de você?


Foi numa cidade chamada Arcoverde. Eu estava lá, e quando terminou a temporada dele nessa cidade, ele me adotou. Quer dizer, não por escrito. Dois e eu. Então, eram três filhos adolescentes. Fomos pro Recife. Lá, ele tomava parte, tinha influência, em uma Banda dos Operários. Fui levado por ele a tomar parte dessa banda. Me lembro que cheguei lá e perguntaram, "o que o rapazinho toca?" Eu disse, "qualquer um". Eu estava doido pra tocar. Não foi assim arrogância não de minha parte. Era pra dizer que o que tivesse eu tocava.

E você acabou tocando o quê?

Ah, eu disse, "mas se o senhor me der um saxofone, melhor ainda". Uma passagem digna de sorrir é que o saxofone que ele me botou pra tocar estava tão guardado que eu tive que botar água pra tocar. Mas quando fui botar água, saiu um rato lá de dentro. [risos]



Isso foi depois que você pediu o instrumento pra ele em Flores?

Sim, bem depois. Eu saí fugido de Flores.

Fugido? Por quê?

É história idiota. Eu cheguei a um ponto que lamento muito. Eu ia buscar a chibata pra apanhar. Não era a família, era só uma moça. Uma senhora, minha tutora, tudo era com o Moacir. Tudo era "vai buscar a peia". E eu ia buscar pra eu apanhar. Ela batia muito. Mas é um pouco talvez porque foi logo depois dessa coisa de abolição dos escravos. Era uma casa de gente branca. Então, fugi, com 14 anos de idade. Fui perambulando de cidade em cidade. Fui saindo, ia acompanhando as cidades onde tinha banda tocando. Eu não demorava sequer um mês em cada uma. Qualquer coisa eu me desligava da cidade. O meu gênio não suporta coisa que me aborrece. Cheguei a trabalhar até em um circo, chamado Paraíso. Por isso que no meu último disco tem uma música chamada "Paraíso", por causa desse circo. Eu deixei o circo Paraíso para ir pra Salvador, Bahia. Aí, lá aprendi muito, peguei muita coisa, havia muitos músicos americanos.

Você já sabia ler música?

Sim, em Flores foram muitos professores, até os 14 anos. Mas teve uma história. Em Salvador tinha um rapaz chamado Joca do Piston, tocava trompete. Quando eu cheguei na cidade, alguém me convidou para tomar parte de um ensaio na casa de Joca, em uma orquestra que ele estava fazendo. Mas, quando eu estava lá, a orquestra parou no mínimo umas quatro vezes por minha causa. Jazz, coisa americana, não conhecia essas coisas. Eram muitos detalhes, eu não acompanhava, lia muito devagar. Nesse ensaio, ele disse: "vocês tenham paciência com esse garoto, ele é promissor". Isso foi muito importante. Eu tinha uns 16 anos. Só sei que quando saí da casa de Joca, fui chorar. A decepção que eu passei. Saí vendo a coisa diferente, por causa da vergonha que passei. Tive que aprender. Depois disso, me tornei um exímio da leitura. Em qualquer lugar eram filas de gente, estudantes, músicos, para me ver tocar, observar minha leitura. Então, não sei o mistério da natureza.

Você ficou muito tempo em Salvador?

Não. Lá, eu fiquei com saudade do meu Pernambuco. Resolvi voltar. Fui numa das docas pedir uma passagem de navio. Mas eu não tinha dinheiro. Aí eu encontrei um caminhoneiro. Ele era conhecido em Salvador e eu conhecia ele de Flores. Ele me levou até o Ceará, onde faz fronteira com Pernambuco, a ponte liga. Por isso que tem uma música minha chamada "De Bahia ao Ceará".

Você tinha o quê, 16 anos?

Minha vida é um encadeamento sem fim. Isso já é outra história. [risos] Quando eu estava em Salvador e resolvi voltar, fui nas docas pedir uma passagem, me perguntaram, "quantos anos você tem?", e eu não sabia. Tinha dois senhores. Um deles disse, "esse menino não tem mais do que 16 anos". Aí, foi assim, fiquei com essa idade.

Você não lembrava a sua idade?

Não sabia mesmo. Não sabia nem onde tinha nascido, não sabia o meu nome direito, só sabia que é Moacir. Meu pai tinha largado a gente, minha mãe morreu eu tinha três anos, depois eu fugi da cidade. Eu me sentia como um ser, órfão, sem saber direito o meu nome nem quando eu nasci. Parecia uma criatura numa pedra no meio do mar, com as águas batendo, como as pessoas perguntando, "quem é você, qual o seu nome, quando você nasceu, onde você nasceu?", e eu não sabia de nada. Mas agora eu sei. "Agora eu sei" é o título de uma das coisas aí, de uma música minha.

E como ficou sabendo?

Eu fiquei com uma coisa aqui até que numa viagem dessas, recente, isso não faz muitos anos não, eu encontrei meu batistério, minha certidão. Sabia mais ou menos cidades em que eu provavelmente havia nascido. Então eu comecei, numa viagem que a gente fez pro Brasil. Fui nessa cidade de Serra Talhada e cheguei numa circunscrição chamada Bom Nome. Porque quando muito pequeno ouvi certa vez meu irmão dizer que tinha nascido num rincão de Serra Talhada. É complicado. Então eu fui em Bom Nome primeiro. Parei na porta da igreja e fui conversar com o padre. Perguntei: "Quem é a zeladora da igreja?" Aí segui uma rua e fui parar em outra cidade, chamada São José do Belmonte. Lá, eu fui sabedor. Estava eu, um sobrinho, uma encarregada da casa, umas quatro pessoas. Distribuímos os livros que constavam as idades e fomos lendo. Felizmente, eu fui o vencedor. Quer dizer, estava com a idade certa e achei meu nome. Aí essa coisa foi a verdadeira coisa de Moacir Santos.

Você finalmente achou lá registrado seu nascimento, em São José do Belmonte.

Ah [suspirando aliviado], isso.



Então a sua mãe estava em são José do Belmonte quando você nasceu?

Não. Isso aí é a circunscrição de igrejas. Quer dizer, eu nasci num rincão, numa fazenda de Serra Talhada, mas foi registrado ali, na igreja. Me lembro que quando descobri, pedi licença à moça encarregada da igreja em Bom Nome. Licença pra eu dedicar uma coisa pra ela, improvisar uma coisa pra minha mãe e chorar. Eu pedi licença e toquei o órgão. Porque mãe é mãe. Mãe é tudo na vida. Não tem jeito. Portadora da nossa vida.

Quando você se cansou de viajar, depois de ter fugido com 14 anos?

Eu me casei com 21. Só aí parei. E nesse tempo todo o único lugar que eu demorei mais do que um mês - acho que foi um ano, dois -, foi na Paraíba. Somente a polícia fez eu parar. Mas com a música. [risos] Eu era músico da polícia de João Pessoa, tocava sax. Foi lá que conheci também Cleonice, minha esposa. Mas nessa ocasião eu já era maestro da Rádio. Por que o que aconteceu foi que a orquestra de Severino Araújo, que tocava na rádio, foi para o Rio de Janeiro e levou quase todos os músicos. Aí ficou necessidade de músicos e do maestro. Me lembro que fui na casa do comandante da polícia e disse que eu estava sendo requisitado com urgência. Ele foi um santo e prontamente me dispensou. Então saí da polícia para tocar sax na rádio e em pouco tempo virei diretor e regente. Era a rádio PRI-4, Rádio Tabajara. Acho que a orquestra de Severino passou a chamar Tabajara quando foi pro Rio, por causa da rádio.

E quando você foi embora de João Pessoa?

Aconteceu que a gente não tinha instrumento e fomos tocar em um lugar com os instrumentos da rádio. Todos foram multados. Eu, que era o regente, e também os músicos. Mas parece que a rádio tinha um diretor artístico que não me queria, havia dito "ou ele, ou eu". Então, depois que eu fui multado, a polícia me levou pra conversar com um Dr. Renato, que era do governo. Ele me chamou pra resolver e falou, "Moacir, os órgãos do governo não podem ser desmoralizados". Aí eu repeti a expressão do diretor artístico, "ou ele, ou eu", e ele respondeu, "sendo assim, pra onde você quer ir?" Eu não pensei muito: "Rio de Janeiro". Então eles mandaram uma carta pra Rádio Nacional, no Rio, recomendando a minha pessoa.

Você foi como músico?

Fui trabalhar como músico, embora eu tenha me tornado maestro. Todo mundo, de qualquer lugar, era requisitado e entrava. Pelo nome já ia direto. Já o rapazinho do norte, que sou eu, teve que se submeter a uma prova, um teste. Mas eu já lia bem, já fazia quase milagres em música. Então aconteceu uma coisa muito interessante. Fiz o teste com o Maestro Chiquinho, um dos maestros da Rádio Nacional, e na mesma semana o diretor da rádio perguntou a ele, "que tal o rapazinho do norte?" E ele disse: "Senhor diretor, o teste foi pra nós. A gente botou uma música e ele tocou como se conhecesse. Depois ele botou uma e a gente não conseguiu tocar."

Você já chegou lá conhecendo muito de música.

É, e nessa mesma época eu havia feito uma jura com nossa senhora, de estudar até saber o que eu faço em música. Eu fazia sem saber as coisas, era intuição mesmo. Eu estava morando na Rua do Catete quando fiz essa promessa. Estudei tudo, eu queria saber teoricamente o que sabia em música. Eu tive aula e depois fui até assistente de Koellreutter. Quando ele viajava pra Salvador ou São Paulo, era eu assistente, ficava no lugar. Depois eu tomei grande parte dos alunos dele, quando me tornei professor.

Foi assim que você conheceu e passou a dar aulas pro pessoal da bossa nova?

É, foi um período trunfo da minha vida e da minha música, na bossa nova. Eu lembro, por exemplo, de ter feito um arranjo pra um samba carnavalesco, chamado "Madalena". Uma geração depois, eu era apresentado como o arranjador daquela música. Então, me acostumei a fazer coisas pra geração futura. Me convenci que o agora já era, vão entender melhor no futuro. Porque a música é um som que vai acontecer e o povo vai sentir. Mas é muita coisa que eu faço que a massa ainda não pode entender. Agora, não pergunte o que faço, não sei explicar. É a evolução das coisas. É um mistério.

Você participava das reuniões da bossa nova?

Ah, sim. Freqüentemente. Quase sempre com o Baden. Eu tocava clarinete ou saxofone. O clarinete é mais suave, então era mais fácil para aquelas reuniões, que começavam depois das onze horas da noite. Saxofone ia acordar todo mundo. Naquela época, eu e o Baden fazíamos um espetáculo com "Nanã" que não era brincadeira. Em Copacabana não tinha um momento em que eu não tocasse "Nanã". Em cada reunião musical em que eu estava presente eu tinha que tocar. Foi assim que ela se popularizou. Me lembro de uma reunião na casa não lembro de quem, acho que da Nara Leão. Tom estava lá, com um namoro, com uma pessoa. Então eu só sei que quando a gente estava tocando ele saiu de lá e veio aqui e pediu a mim que passasse a noite inteira tocando essa canção. "Toque essa música o tempo todo enquanto eu estiver aqui."

E quem foi a primeira pessoa a gravar "Nanã" cantando?

Eu acho que foi Nara Leão, na trilha do filme "Ganga Zumba", do Cacá Diegues. Lembro que o Cacá Diegues ouviu, acho que numa reunião, e ficou encantado, então me disse "quero essa música na abertura do filme". A Nara cantava cantarolando, somente laralara, porque parece que ainda não havia letra não.

E como aconteceu a letra? Vinicius ia escrever, depois foi Mário Telles...

O Vinicius era parceiro meu nessa ocasião, a gente se gostava muito, era muito íntimo. Ele vivia em minha casa como eu na casa dele. A cachaça, a cana de açúcar foi introduzida na casa de Vinicius por mim. Um dia ele perguntou: "Moacir, o que você quer, um uisquezinho?" E eu: "quero tomar um 'crushzinho', um pingo de cachaça no Crush". Aí a cachaça entrou na casa de Vinicius por minha causa. [risos] Mas teve uma coisa que ele botou na letra de "Nanã", ele disse umas coisas, que eu não gostei. Aí certa vez houve uma recepção qualquer no Rio de Janeiro e eu fui falar com ele, "Vinicius, você foi para o exterior, nem me avisou", e ele disse, "eu estava muito aferrado em minhas coisas". Aí eu compreendi que eram coisas que eram dele e dispensei. O Mário Telles vivia também em minha casa, então eu dei a ele para fazer a letra, sugeri coisas. Fiz a letra com Mário: "não, isso aí não, isso aqui". Pronto.

E por que você não havia gostado da letra do Vinicius?

Porque "eu fui olhar o banho de Nanã". Só isso. Aí eu não gostei, essa coisa de espiar o banho de Nanã, espiar Nanã tomando banho. Qualquer coisa, menos espiar o banho dela, aí eu não gostei.

"Nanã" é mais antiga, nasceu antes das "Coisas"?

Ela nasceu antes, só como "Nanã". Porque tinha sido feita antes das "Coisas". Algumas coisas viraram "Coisas" depois de feitas. Porque isso aconteceu quando Baden me convidou a eu fazer parte do disco dele que estava fazendo com Jimmy Pratt, baterista americano, lá na rua Avenida Rio Branco. "Moacir, gostaria que você fizesse alguma coisa na minha gravação, qualquer coisa." Aí eu fui lá, com muito prazer. Alaíde Costa também estava lá presente, cantando, ela é um xodó de Vinicius. Quando chegou lá, gravando, uma música minha, o moço da cabine de som desceu e perguntou: "qual o nome dessa?" E aí, e agora? Eu admirava e andava estudando muito forte os opus e tive a idéia. Mas quem sou eu pra escrever um opus? Então eu, "isso é uma Coisa". E foi aí que ficou o título, as "Coisas" de Moacir Santos. Por causa disso. Eu não podia "opus", então "Coisas".

E foi por causa das "Coisas" que você acabou gravando pela Blue Note?

Não, foi Horácio Silva o causador, que me levou pra Blue Note e fez eu lançar o disco lá. É uma história que tenho satisfação grande de contar. Primeiro me contaram de um evento, ele tinha ido em Niterói, na casa de Sérgio Mendes, e lá cheio compositores da bossa nova, jovens músicos, todo mundo pra tocar e mostrar suas músicas. Escutou muita coisa, mas teve uma música que chamou muito a atenção. Ele parou num certo momento e disse, "de quem é essa música?", e responderam, "de um professor aí". Era "Nanã". Alguns anos depois, eu estava morando em Los Angeles e tinha um amigo, que era chefe do departamento de correio e adorava o Brasil, que foi me visitar e me convidou pra gente ir dar um passeio, uma volta ali na cidade, ver o que é que está acontecendo. Ele queria ir num lugar chamado Lighthouse. Eu perguntei a ele quem é o artista que ia tocar hoje, ele disse Horácio Silva. Aí a gente foi e no primeiro break ele foi parabenizar o conjunto, que eu gostei muito também. Aí me apresentei, o autor de "Nanã", e depois, antes de tocar de novo, ele disse: "Senhoras e senhores, eu tenho o prazer de apresentar a vocês uma pessoa, um músico que vocês ainda não conhecem, mas vão conhecer". Proverbial essa sentença, "vão conhecer". Quer dizer, já estava na mente dele, já estava escrito que ele ia me lançar no mundo da música nos Estados Unidos.

Depois disso vocês ficaram amigos?

Isso. Aí um dia eu tinha ido passar uma semana em Nova York pra fazer um disco do João Palma, que era baterista do Sérgio Mendes, e aproveitei pra visitar Horácio Silva, que morava lá. Então me convidou pra um jantar à presença do diretor artístico da Blue Note, e aí aconteceu. Ele me pagou um adiantamento imediatamente, sem ter ouvido a coisa, só pela palavra do Horácio Silva.

E aí você gravou seu primeiro disco lá?

É, mas antes disso já estava certo que eu ia gravar por outra companhia, e o Henry Mancini ia produzir. Ele foi incumbido de lançar meu primeiro disco nos Estados Unidos, mas não aconteceu porque antes ele fez um disco, aquele "Romeu e Julieta", e teve um sucesso muito grande. Aí o disco de Moacir caiu da mão dele, né? [risos] Tem outra história também, que eu morava numa rua perto do estúdio da Paramount, acho. E aí me apontaram para eu fazer umas pontas lá com a equipe de Lalo Schifrin. Eu trabalhei como compositor fantasma, não aparecia meu nome lá, era a época da série do "Missão: Impossível". E eu nunca nem vi o Lalo Schifrin, só através de foto.

E hoje em dia, Moacir, você sente falta de tocar?

Há 12 anos já que eu tive um "stroke" (derrame) e me retirei, parei de tocar. Tenho exercitado, porque é uma ajuda muito boa, o piano me ajuda muito, mas minha mão direita não toca. Eu não sinto falta porque a imaginação vem por outras fontes. Eu ainda componho.

Tem muita música sua que ainda não foi gravada?

Tem algumas.

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9 Responses to “Coisas”

  1. # Blogger discoecultura

    Parabens Ronaldo... beM legal  

  2. # Blogger Ronaldo Evangelista

    Valeu, dude!  

  3. # Blogger TRZ.Blog

    Este comentário foi removido pelo autor.  

  4. # Blogger TRZ.Blog

    Olá Ronaldo, muito bacana a entrevista, finalmente conheci a história do nosso maestro, e o melhor...por ele mesmo, demais!
    Parabéns por esse incrível registro.

    Fiz um remix das "coisas" de Moacir, pra conferir acesse: http://www.myspace.com/samacorecords
    nome da música: "The Maestro"

    Um abraço!

    FERNANDO TRZ  

  5. # Blogger Ronaldo Evangelista

    Valeu, meu velho.  

  6. # Anonymous Anônimo

    que lindo esse vovozinho! finalmente uma entrevista em que não cortam o jeito de falar do entrevistado.

    ju lopes  

  7. # Blogger Ronaldo Evangelista

    Aê, valeu, Ju.
    Como vai a Itália?
    Bjo  

  8. # Blogger Pipo

    parece que o moacir saiu dum livro do guimarães mesmo. e é a primeira vez que vejo algo sobre ele indo além do papo de sempre sobre a música dele.

    baita trabalho cara, parabéns!  

  9. # Blogger Movimento Elefantes

    Porra, eu músico do PCF nunca tinha lido sua entrevista com o maestro. Muito boa, de mais!

    O Projeto Coisa FIna e outras big bands de amigos estão começando um movimento em Sampa e eu queria muito, muito, muuuuuito, que você participasse dessa brincadeira.

    Vou te escrever um email,

    Abração!

    Vinão  

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