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Onde estão os heróis de outrora?



Mas aí depois da 2a Guerra veio a guerra da Coréia, e a bomba atômica foi superada pela de hidrogênio, e todo mundo começou a pensar em abrigos antinucleares, enfim, finalmente se delineou claramente aquilo a que Karen Horney chama "a personalidade neurótica do nosso tempo". A Psicanálise tornou-se uma realidade quotidiana, a televisão e a propaganda começaram a fazer do homem um consumidor, as ideologias em conflito estavam mais rampantes do que nunca. O homem descobriu que o seu mundo tinha virado bagunça enquanto ele dormia e, quando ele acordou, estava neurótico.

As personalidades de Jules Feiffer refletem toda essa confusão. São magrinhas, frágeis, doentes. Só têm problemas. Uma historinha do Feiffer mostra um super-homem raquítico atravessando a rua, quando passa um carro e espinga lama na sua roupa. "É sempre assim - diz ele - outro dia fui ajudar uma velhinha a atravessar a rua; ela olhou pra mim com uma cara furiosa e perguntou se eu tinha uma compulsão neurótica a ajudar as pessoas. Aí passou uma garota e disse que a minha capa devia ser uma saia e que eu era um homossexual latente. Ninguém acredita mais em mim..."

Feiffer descreve o seu público sofisticado com suas personagens neuróticas. Satiriza os conformistas e os não-conformistas, os que fazem análise e os que não fazem análise, os que pertencem a turminhas e os que pertencem a turminhas antiturminhas. As histórias em quadrinhos, com Feiffer, nem têm mais quadrinhos. E as personagens também não falam mais através de nuvenzinhas. A gente diria que é um mundo estranho, se não reconhecesse tanto o mundo atual. Os temas não são os temas clássicos tipo mocinho-salva-mocinha-acorrentada; o próprio mocinho, ou melhor, a própria alma do mocinho, está acorrentada a preconceitos, a dependências, a problemas, a esquemas. O herói feifferiano, antes de querer libertar a mocinha, tem de libertar a sua própria alma. O mundo do Feiffer seria dramático - se não fosse tão engraçado. Ridendo, Feiffërus castigat mores.

Com Feiffer, o herói das histórias em quadrinhos deixa de ser um mito para ser uma pessoa como qualquer um. De repente, o mito desaparece e o homem que não supera isso imediatamente enfossa. Sem exceção nenhuma, todos os heróis de Feiffer estão na mais negra das fossas. As vítimas preferidas deste desenhista são os racionalistas, os pensadores, os intelectuais que intelectualizam tudo - até as histórias em quadrinhos.

No entanto, se o mundo de Feiffer é um mundo de ansiedade e de dúvida, o mundo dos Peanuts é de neurose e de agressão. A angústia dos Peanuts está sempre rampante e generalizada. E o impacto dessa problemática é maior porque os Peanuts são apenas crianças. Peanuts foi criada em 1950 por um americano genial, Charles Schulz. Em 15 anos, os Peanuts se tornaram a história em quadrinhos mais lida nos EUA e talvez no mundo. Peanuts foi traduzida em todas as línguas: na Noruega são Os Rabanetes, no Japão Os Menininhos.

Schulz disse uma vez, numa entrevista, que Peanuts é tão apreciado porque trata do problema de todos. O tema da historinha engloba o amor e o ódio, a fé e a razão, o Bem e o Mal. É por isso que um estudante de Teologia viu em Peanuts uma mensagem eminentemente cristã e publicou um livro: O Evangelho segundo Peanuts. Nesse livro, Robert Short compara as séries de quadrinhos às parábolas do Evangelho. Por exemplo: no 1o quadrinho, Charlie Brown, a figurinha principal, está construindo um magnífico castelo na areia, com todas as torres e almeias em detalhes. Aí começa a chover, e o garotinho assiste àquela chuva impiedosa que destrói inteiramente o seu belo castelo. Aí Charlie Brown olha pro leitor e diz: "Deve haver uma moral qualquer nisto tudo, mas eu não sei qual é."

Segundo Robert Short, a Moral está no Evangelho, mais precisamente na parábola em que Cristo diz aos homens que as casas devem ser construídas na pedra e não na areia. "Só o tolo faz sua casa na areia; pois quando chegam as chuvas, grande é a sua queda."

O Evangelho - e Peanuts - sugere que os homens só devem acreditar em ideologias de bases sólidas. O livro faz uma interpretação cristã do fenômeno. Mas há outras interpretações; a psiquiátrica, por exemplo. Um belo dia, Charlie Brown não agüenta mais e vai a um psiquiatra, que não é outro senão a Lucy, a menininha tirânica, dominadora e egoísta da série. "O meu problema é que eu tenho medo de Jardim da Infância", ele confessa. "Eu nem sei porquê. Já tentei raciocinar, mas não adianta." Ao que a psiquiatra Lucy responde, sadicamente: "Você não é diferente dos outros. Tenta se ajustar. 100 cruzeiros, por favor."

Há uma lenda, nos EUA, que várias vezes psiquiatras receberam cartas dos seus pacientes, contendo uma anedotinha dos Peanuts, com um bilhete dizendo que não precisavam mais de tratamento; tinham descoberto a causa dos seus problemas. Realmente, as situações da TIRA abarcam vários tipos de neuroses. Começando com o heroizinho Charlie Brown, que nunca consegue, por mais que tente, fazer as coisas simples da vida de uma criança: empinar um papagaio, por exemplo, ou ganhar um jogo de baseball. Os seus papagaios sempre se enrolam nos fios da eletricidade, e nada, mas nada mesmo, do que ele tenta fazer, dá certo. Tudo sempre sai errado. É fácil, por causa disso, se identificar com Charlie Brown e rir de si mesmo rindo dele.

o enorme rival de Charlie Brown é o lourinho Schroeder. Schroeder é pianista. Pianista clássico. Só gosta de Beethoven. Tem um enorme busto de Beethoven em cima de seu pianinho de brinquedo. Schroeder é o intelectual e o artista do grupinho; nem precisa dizer que a feroz Lucy está apaixonada por ele. Schroeder é o calcanhar de Aquiles da Lucy. E também não precisa dizer que Schroeder não dá a mínima bola para Lucy. Nem suporta a presença dela. Ou seja, todo mundo entra bem nessa historinha. Charlie Brown estraga tudo o que faz; Lucy agride todo mundo menos o Schroeder, que a detesta e que é um artista incompreendido. Não pode ser mais neurotizante, não pode ser mais mobilizante, não pode ser mais humano; e é a mais popular das histórias em quadrinhos modernas.

Só falta o Linus e o cachorro Lingüiça. Linus é talvez o mais neurótico deles todos - mas é difícil saber isso, eles são todos tão doentes... Linus não consegue viver dois minutos longe de um cobertor que está sempre chupando. O cobertor é um símbolo claro de todas as dependências neuróticas do homem moderno, que depende do analista ou da mãe ou da namorada ou da mulher ou dos amigos ou mesmo de um cobertor, quem sabe.

Se Linus se afasta do seu cobertor, morre de angústia. o cobertor é sua defesa para com o mundo exterior, é a sua máscara; sem ela, Linus está nu e vulnerável. Quanto a lingüiça, é o único normal em todo esse asilo que no fundo não é asilo nenhum, é a sociedade atual. Lingüiça aprecia as coisas simples da vida: um sorvete, um cachorro quente, uma música gostosa de ser dançada. Dá o contraste aos eternos neuróticos agressivos dessa historinha, por quem é sempre agredido - mas o cachorro Lingïça é um exemplo do bom cristão, e sempre perdoa.

Charlie Brown e sua turminha têm muito de Carlitos, de D.Quixote e de Huis Clos. Simbolizam - de um modo irônico, com uma agressão tão leve que o leitor pensa que é graça - as complicações das inter-relações do mundo moderno. São simpáticas e dignas de pena nas suas pequenas fossas. São o oposto dos bem ajustados Luluzinha, bolinha e Daniel o Travesso. São incapazes de uma travessura, aliás são incapazes de tudo - a não ser Schroeder, cujas caixinhas de música tocam partidas e fugas de Bach. Mas mesmo Schroeder, o Gênio, tem os seus problemas. Uma vez Lucy lhe pediu que tocasse "Cai Cai Balão" para um seu irmãozinho. Schroeder tocou, mas antes reclamou: "Puxa! Tou só com três anos e já tenho que me prostituir comercialmente..."

O próprio Schulz já disse uma vez que o seu frustrado e frustrante mini-herói, Charlie Brown, representa a insegurança de todos, e a vontade que todos têm de ser amados. É por isso que o humor e a comicidade desta história em quadrinhos é especial; o próprio leitor participa dos quadrinhos, faz parte das situações problemáticas apresentadas. Charlie Brown descende de uma longa tradição de eternos perdedores, cujos antepassados são D. Quixote, Carlitos, o Gordo e o Magro. Hoje, seus outros parentes são todos famosos - são os heróis de Feiffer.


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Trecho de ensaio do Alfredo Grieco, controlcezado do Livro de Cabeceira do Homem, ano II volume 7. Segundo a orelha, ele é da novíssima intelligentsia de 1968 e aqui pesquisa os heróis das histórias em quadrinhos, protótipos de fantasia da geração McLuhan.

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