RONALDOEVANGELISTA


Abre Aspas: Arnaldo Baptista, Elogio da Loucura



Antes fosse se a música popular se compusesse exclusivamente de canções e pessoas que cantam. Quase todos sabem que não é assim: como qualquer carro, cigarro, bem de consumo, música se nutre - e tanto - da carne frágil de mitos, lendas, rumores, imagens. Há quem compre um disco gosta do modo particular como as notas e as palavras estão arrumadas ali, mas a maioria o faz porque, sim, o cantor lhe evoca certo sentimento de... admiração... inveja... está ali dizendo o que eu deveria dizer... poderia ser meu filho... queria que fosse meu namorado... queria que fosse eu...

Do arsenal de fantasias contemporâneas em torno (e por causa?) da música surgiu, não faz muito tempo, um estranho mito: a loucura. Não essa ruptura dolorosa e trágica vitima personagens de peças gregas, não essa miséria ínfima e voraz que destrói rostos magros em ambulatórios, não a real lucidez absoluta e desesperada do abismo. É uma outra loucura, essa, ungida quase como uma benção, como aura, atributo derradeiro de herói. Fulano? Fulano pirou (dito com um leve sorriso de cumplicidade e/ou os olhos arregalados de admiração). Brian Jones? Pirou. Jimi Hendrix? Ah, esse nasceu pirado. Janis Joplin? Pirou total. Sem mencionar - esses sim, a nata, só para conhecedores - os totais pirados ambulantes, pequenos e básicos personagens da lenda moderna: Brian Wilson, o irmão mais velho, arranjador genial do grupo americano Beach Boys; Robert Fripp, guitarrista absurdo, fundador do grupo inglês King Crimison; Lou Reed, o cantor, parece que esse também andou pirando brabo... Pequenas histórias, pequenas glórias, pequenos segredos.

Arnaldo? Arnaldo dos Mutantes? Arnaldo pirou.

Como vivemos cotidianamente entre outros, os restos do grande sonho ocidental da eterna juventude - também conhecido como Rock’n’Roll - não nos faltam (anti) heróis. Estilhaços de espelho que já não refletem face alguma, a não ser a busca de uma imagem, uma imagem qualquer. Já temos nosso pequeno mas animado panteão de mitos, lendas, afetos, desafetos. Discos. Guitarras. Festivais ao ar livre. Uma musa - Rita Lee. Um ponto de referência mítico, no passado: os Mutantes, alegres, demolidores de caras sérias, brincando, brincado nos festivais da canção. Prisões. Queixas. Inimigos. Entrevistas. Ainda não tivemos nosso Woodstock e ninguém morreu tragicamente na estrada do rock mas, paciência, ninguém é perfeito. Temos o nosso louco também. Arnaldo Dias Baptista. Arnaldo? Pirou.

-Você pirou, Arnaldo?

-Passei quatro anos num ostracismo. Não tinha ninguém, mulher nenhuma. Ninguém me queria. Não tinha amor. Aí me internaram, porque parece que fiquei uma pessoa violenta. E eu não quero ser uma pessoa violenta. Diziam que eu era. Me internaram. Agora estou bem. Cortei as drogas. Tenho um psiquiatra. Tomo uns remédios. Estou bem. Logo que saí de ser internado eu comecei a fazer esse grupo, a Space Patrol. Ia chamar assim, mas por razões de... evolução... não... Chama Patrulha do Espaço. Estamos trabalhando há um ano. É um bom trabalho. Eu trabalho muito. Não sou violento. A bateria é. O piano não consegue, por causa da amplificação.

Arnaldo recita sua história como se estivesse contando para si próprio. Os olhos fixam o palco escuro do Teresa Raquel onde um punhado de técnicos se estafa para montar a aparelhagem do grupo. Mas os olhos não estão lá: estão além, muito além, fora do teatro, fora do Rio de Janeiro. Há um traço do garoto que era - esse querubim insolente de chapéu emplumado no palco do Maracanãzinho, há 10 anos, quem lembra? - no rosto ainda redondo, de traços delicados. Mas sua face é de devastação e dor sincera, e o olhar luta para encarar o interlocutor com um mínimo de simpatia e doçura. Um cigarro queima, solitário, na mão esquerda. Às vezes, um sorriso vago se esboça, ele murmura alguma coisa, diz “perdão... perdão”. Subitamente pede licença, vai correndo ao palco cuidar, pessoalmente, das ligações elétricas de seu teclado Hohner. Se é possível ter certeza de algo, de coisa sei: ele não está brincando de pirado. Todo seu corpo, todo seu rosto está empenhado numa batalha surda e intensa, digna, que não tem nada a ver com as possíveis fantasias de sua ex ou atual platéia. Agachado atrás dos amplificadores, metodicamente checando fios e plugs, sobrancelhas cerradas, ele não parece um herói: está lutando por sua vida. Com todas as forças.

A saga de Arnaldo Dias Baptista começa há mais de 10 anos atrás, em São Paulo, com uma aglomeração de amigos que se chamou Six Sided Rockers, depois O Grupo e, finalmente, os Mutantes. Incluía seus irmãos Sérgio e Cláudio - esse, um minigênio em eletrônica, que até hoje desenha e produz aparelhagem para Sérgio e Arnaldo, e uma boa amiga, Rita Lee. Viviam de e para o rock, esse fermento então incipiente mas com força total. Freqüentavam de juventude da TV paulista e, de lá, se viram subitamente guindados ao eixo tempestuoso da música popular brasileira por obra e graça de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Rita, Sérgio e Arnaldo. Três crianças risonhas brincando de fazer rock diante das câmaras, diante dos senhores jurados, da distinta platéia. Vestidos de marcianos, de cavaleiros andantes, de espelhos, de malucos. Sérgio era o músico. Rita era a gracinha. Arnaldo era o cérebro.

Como não esperavam - porque não pensavam no assunto -, viraram uma espécie de lenda viva, mito. Natural: para quem tinha 15, 16, 17 anos na época, era a suprema delícia e glória total ver o sonho posto em prática, a guitarra tocada de verdade, a brincadeira instaurada. No começo dos anos 70, os mitos e as brincadeiras começaram a se levar a sério. Contracultura, lembram? No seio dos Mutantes - ainda no topo do panteão particular dos mitos - Arnaldo continuava a ser o cérebro. Tropa de choque. Para-raio. Casado com Rita. Produziu para ela um disco hilariante, genial: Hoje é o primeiro dia do resto de sua vida.

Aí Rita se separou dele. Aí os Mutantes descobriram que lá fora existia rock sinfônico, espacial, tanta coisa. Aí a saga de Arnaldo começou a virar tragédia.

Difícil, hoje, apurar os dados exatos desse processo. Alguns são públicos e notórios: a separação de Rita, sua saída dos Mutantes, a saída do próprio Arnaldo. Há um longo silêncio depois interrompido apenas em 74 por um disco doloroso, estilhaçado, mas brilhante: Loki?, para a Phonogram. E, há coisa de um ano - precedido do folclore impiedoso dos boatos, histórias fantásticas e piadas - a volta aos palcos com um grupo novo, a Patrulha do Espaço. Júnior na bateria, Dudu na guitarra, Oswaldo Gennari no baixo. Todos músicos esforçados, todos músicos modestos, todos roqueiros paulistas, raça tão típica, deflagrada justamente a partir dos Mutantes. Muitos shows pequenos, periferia da cidade, uma fita gravada no estúdio de seu bom amigo Rogério Duprat, a tentativa de um disco. Agora, o Teresa Raquel, onde fica até domingo. Atrás das caixas, desenrolando fios e conectando plugs. Procurando seus pedaços, os pedaços de um sonho, sua música.

-Rock eu gosto porque é meu sangue. É minha vida, desde que nasci.

Subitamente, o olhar aceso, o rosto atento e inteiro como há anos atrás, como em... Foi-se, passou...

-É Patrulha do Espaço por causa de umas transações de disco voador. Isso eu conheço muito. Conheço profundamente.

Um olhar cúmplice. Um quase sorriso.

-Mas o som não é espacial. É terra. Por causa do equilíbrio. Tem um lado que é espírita, que é quando a gente procura negar todas as vibrações. Tem agressividade, também. A bateria é agressiva. É uma coisa muito forte. Já toquei bateria. Estudei bateria muito tempo. Mas desisti quando ouvi o Carl Palmer. Ele é um gênio, ele é dos poucos que lêem música entre os bateristas.

De novo a concentração, o fluxo interno. Um desvio.

-Estudei dança também. Só fiz uns três cursos. É muito bom. Você já fez? Minha mulher, Marta, faz dança. Eu acredito no casamento. Com Marta quero ficar até morrer. Até morrer. Tenho um filho, o Daniel. Tem um ano e meio. É uma pessoa incrível. Tem tendências para as ciências biológicas, creio. Tenho também um cachorro, e uma gatinha que toma conta do cachorro e um peixe. Minha ecologia é assim.

O cigarro na mão esquerda, queimando até o filtro.

-Quando eu ouvia a Rita, gostava. Não ouço nem vejo a Rita há muito tempo. Me faz muito mal. Más vibrações. Para baixo. Marta não deixa porque me faz mal. Os Mutantes do Sérgio eu operei som para eles, uma vez. O Sérgio vem tocar aqui com a gente no domingo, dar uma força.

Tem saudades dos Mutantes, Arnaldo?

-Era bom. Não, não tenho saudades. A agressividade, naquele tempo, era quase nula.

E esse grupo novo?

-É minha vida. É uma batalha dura. É tudo o que eu faço.

Se ao menos a banda calasse por um minuto, um instante que fosse, se a bateria não rolasse, se a zoadeira de baixo e guitarra parassem, se acontecesse o milagre e por um breve momento, debaixo da luz cor-de-rosa, Arnaldo se erguesse, ou sua voz subisse, mesmo assim, soluçando e contida, mesmo como está agora, aos pedaços, mas se a mágica, qualquer mágica, explodisse agora nesse palco escuro, estaríamos todos salvos de nossas trevas de voyers, de abutre. Quem veio ver Arnaldo? Garotos, adolescentes, os novíssimos roqueiros atraídos por um detalhe qualquer do cartaz, pelo cabelo desgrenhado nas fotografias dos jornais? Antigos fãs dos Mutantes prestando mais uma tardia homenagem à inocência perdida, checando seus próprios ponteiros? Curiosos, mitômanos, vorazes criaturas à procura de libertação? Ele é muito louco. Piradão, rapaz. Ouvi dizer... É um gênio, mas loucaço. Muito louco. (Antes ele do que eu.)

Arnaldo não quer saber. Dudu, Oswaldo e Júnior não querem saber. A Patrulha do Espaço não que saber. Se fossem mais jovens, diria eu que seu som é punk, mas punk, com eles, é impossível. Digamos que se esforçam, e que acreditam desesperadamente no que fazem.

Arnaldo solitário atrás do Hohner. De vez em quando se escuta a sua voz, dessa beleza patética, que incomoda. “Estão todos pastando/estão todos passando/pela vida.” Uma golfada de ruído. Rock’n’Roll. Se ao menos houvesse um milagre. Estamos todos aqui. Arnaldo, no escuro, coração batendo, não ligue para os assobios debochados e as palmas poucas e os uivos e gargalhadas após cada número. Não ligue, Arnaldo. Estamos aqui, suando com você, esperando essa fagulha, esse pequeno instante, essa graça. Se não veio essa noite, paciência. Virá. Atrás do Hohner, Arnaldo, batendo nessas teclas como se fossem pedras ou pães, laboriosamente, você sabe que virá.


*

Ana Maria Bahiana, entrevista publicada n'O Globo, em 28 de abril de 1978 e aqui.

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