Gonçalo Junior & Loris Foggiatto
5 Comments Published by Ronaldo Evangelista on sábado, 4 de dezembro de 2010 at 11:06 AM.
Nunca se conheceram, mas é maravilhosa a história de como Gonçalo encontrou o que chama de Maior Tesouro das HQs do Brasil - só uma parte do acervo compilado pelo artista plástico e professor Loris ao longo de todo o século XX: dezenas de milhares de revistas, gibis, jornais, livros, fotografias, quadros, recortes em uma casa na Rua Umberto I, Vila Mariana. // Quem sempre falou do Gonçalo é o Eugênio, quem deu o toque do blog dele foi o Matias. A história do encontro com as memórias de Loris, Gonçalo contou por aqui ou vai lendo abaixo.
Muitos amigos conhecem essa história que vou contar aqui. Só que vou fazê-lo com mais detalhes, por que é algo muito raro de acontecer com quem coleciona ou pesquisa sobre quadrinhos no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Sim, porque jamais me considerei colecionador. Apenas leitor e interessado em sua história editorial no Brasil.
Vamos ao fato.
Janeiro de 2010. Um dia qualquer que não me lembro com precisão. Estava eu atolado na biografia do sambista baiano Assis Valente, aquele que fez clássicos como "Cai cai balão", "Boas festas" (Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel) e "Brasil pandeiro". Tarefa oceânica. Não é fácil falar de um cara que morreu há 52 anos, pois todos os seus contemporâneos praticamente partiram desta para melhor. Restava-me vasculhar arquivos de jornais e revistas para preencher lacunas importantes desse artista que tentou se matar seis vezes, até ter sucesso na última.
Descobri, então, que a revista semanal Carioca, do grupo editorial A Noite (circulou entre 1936 e 1955), publicou muita coisa importante sobre Assis. Era semanal, o que demandaria uma pesquisa extensa e intensa na Biblioteca Nacional do Rio Janeiro. Fui ao site Mercado Livre para ver se havia algum exemplar à venda e cuja descrição citasse o compositor. Encontrei vários números, porém nenhum com o nome de Assis citado e cujos preços variavam de R$ 20 a R$ 40.
Desânimo total. Foram lançados ao menos 800 números da revista, em 19 anos. Era preciso mesmo procurar uma biblioteca. Mas eis que vi um anúncio inusitado: alguém vendia 25 números de Carioca por R$ 50 - depois saberia que se tratavam dos volumes 1 a 25, um preciosidade. Ou seja, R$ 2 cada. Apertei o clic e comprei a mercadoria, com alguma desconfiança, pois é muito comum a confusão de que se está vendendo um lote, mas o preço se refere a cada exemplar. Enfim, não me parecia possível que custassem tão pouco.
Esperei um mês e não recebi nenhum retorno do vendedor com o número da conta bancária para fazer o depósito. Já tinha até me esquecido. No desespero em busca de novas informações sobre Assis, lembrei da compra. Liguei para o vendedor e um senhor simpático me atendeu - descobri depois que tinha 75 anos. Disse se lembrar da minha compra e pediu desculpas pela falta de retorno, pois havia machucado gravemente o braço esquerdo. Prometeu me passar o número da conta por e-mail.
Perguntei se ele tinha mais Carioca. "Bastante", respondeu ele.
E outras revistas? "Sim".
Quadrinhos? "Sim".
Pode me mandar uma lista? "Sim".
A relação chegou no dia seguinte, via e-mail. Era pequena e incluia títulos como O Cruzeiro e Shimmy, lendária revista erótica da década de 1920 que nego vendia na época pelo Mercado Livre a R$ 390 cada. Essa publicação era muito importante para mim porque nela Assis publicou uma série de cartuns no ano de 1928, quando tentou a carreira de cartunista antes de virar protético e compositor.
Não resisti e liguei para o senhor imediatamente.
Seu João (nome fictício) me contou uma história que não presteio muita atenção: essas revistas estavam em bom estado e pertenceram ao sogro dele, que morreu no ano passado, aos 96 anos de idade. Ele me disse que morava numa cidadezinha da Grande São Paulo e propôs que eu fosse no sábado seguinte à casa onde estavam as tais revistas - o local permanecera fechado desde a morte do dono.
Encontrei um sobrado de cinco quartos. Ficava na Vila Mariana, em São Paulo. Cheguei por volta das 14h e ele e a esposa me esperavam. Duas pessoas muito gentis. Entrei na casa e não acreditei no que vi: dezenas de milhares de revistas ensacadas com etiquetas que as identificavam. Eram quartos e mais quartos semelhantes: estantes abrigavam aquele mundo inimaginável de revistas.
Eu me aproximei de uma das prateleiras e o que vi me provocou uma tremedeira nas pernas. Não podia acreditar que estava naquele lugar e que aquilo tudo realmente era real.
Tentei falar, o coração acelerou e comecei a gaguejar com que estava diante de mim: cerca de QUINHENTOS NÚMEROS DE O TICO-TICO, publicados entre 1908 e 1957.
Dos muitos pacotes plásticos cuidadosamente identificados com etiquetas havia centenas de números de O Tico-Tico - saberia depois que eram vários anos completos, entre 1915 e 1935, numa média de 52 números para cada ano. Meus olhos repousaram em quantidade semelhante da revista semanal de humor O Malho, marco do jornalismo e do humor gráfico, lançada em 1902 e que circulou até a década de 1950. Noutro canto, havia uma pilha de almanaques anuais de O Tico-Tico (o mais antigo, de 1909, que muita gente pensava ser lenda urbana). Noutro canto, a revista literária VAMOS LER!, do número 1 ao 800, coleção completa, sem faltar nada.
A casa era um biblioteca fantástica, que deixaria Jorge Luis Borges em êxtase. Principalmente para os fãs de quadrinhos. De 1940 a 2008, o solitário morador daquele lugar colecionou todos os suplementos de comics que saíram em jornais de São Paulo, principalmente na Folha da Noite, Folha da Manhã e Folha de S. Paulo. Estavam todos organizados em pastas e empilhados. O Suplemento de Quadrinhos, iniciado em 1940, estava completo. Muitos livros sobre fotografia, cinema e humor estavam numa prateleira - inclusive os de Belmonte, o grande chargista paulistano e amigo do dono do local por toda a vida.
Havia centenas de exemplares de O Cruzeiro, Manchete, Eu sei Tudo, Fon Fon!, A Cigarra, Jornal das Moças, Revista da Semana, Revista do Globo. Somam-se a isso: Gibi semanal (dezenas de números, inclusive o 1), Guri, Gibi Mensal, coleção completa da Edição Maravilhosa, desde a primeira série, em formato reduzido; centenas de exemplares de O Pato Donald, Mickey e os primeiros Almanaques do Tio Patinhas, antes de virar revista mensal. Bote na conta mais centenas de gibis de terror da La Selva e da Outubro, as coleções Grandes Figuras e Epopeia, da Ebal; Fantasma, Flecha Vermelha, Mandrake e muitos outros da RGE.
Foi só isso que consegui discernir nesse primeiro dia. E veio na minha mente um só pensamento: seriam necessários milhares e milhares de reais para comprar aquilo tudo. Se ele pedisse R$ 100 por cada O Malho e O Tico-Tico, daria R$ 100 mil. Se pedisse R$ 300 por cada Shimmy, o lote totalizaria mais de R$ 15 mil. Pobre de mim. E não havia porque não pensar assim. Afinal, ele conhecia o Mercado Livre, paraíso dos especuladores que hiperinflacionaram os gibis.
Até que vi uma pasta grossa, preta, com a ponta de um jornal de quadrinhos. Seria o Suplemento Juvenil ou O Globo Juvenil, lendários tablóides que trouxeram a indústria dos quadrinhos para o Brasil na década de 1930? Nada disso. Pelo menos por enquanto, nada havia dos dois títulos. Tinha ali, simplesmente, o Santo Graal dos quadrinhos no Brasil: quatro dezenas de números de revistas e suplementos de HQ que eu nunca tinha ouvido falar, que circularam entre as décadas de 1910 e 1920. Não encontrara registros daquilo em nenhuma biblioteca pública, nem na Nacional do Rio de Janeiro. E olha que isso é uma obsessão minha.
Um exemplo? A revista Carlitos. Outro? O suplemento infantil da revista Fonfon, de 1913. Ou Mundo Infantil, conhecido, publicado pela Vecchi a partir de 1929. Eu não conseguia acreditar naquilo. Mas, como era possível aquilo tudo ter sobrevivo ao tempo, às fogueiras que queimavam gibis, ao assédio dos colecionadores? Pensei rápido: custe o que custar, eu preciso comprar tudo que está nesta pasta. Assim, poderia completar a história que comecei a contar com A Guerra dos Gibis 1. Tentando não mostrar interesse, perguntei quanto custava aquele lote.
O senhor de 75 anos se limitou a dizer: "Mas, meu filho, isso aí é muito velho, está caindo aos pedaços". Não, não estava. Bom, estava mas me interessava muito. Mais do que qualquer coisa. "Mesmo assim, gostaria de levar. O senhor me vende? " E ele: "Não, não vendo. Pode levar de presente para você". Eu ainda não fazia ideia de que estava diante de uma das pessoas mais generosas que cruzei em minhas quatro décadas no planeta terra. E as Shimmy, por quanto vende cada uma? Resposta: "Ora, isso te interessa mesmo? Pode levar de presente".
E ele desviou a conversa de volta a Carioca. Queria saber se levaria mais exemplares. Disse que sim e ele falou que faria todo o lote restante por um bom preço - menos de R$ 1 cada. Aquilo não podia estar acontecendo. Encorajado, perguntei pelo preço de cada O Malho, O Tico-Tico e Edição Maravilhosa. Mesma coisa, R$ 1 real cada. E os almanaques natalinos de O Tico-Tico e Juquinha (estes, de 1916 a 1935)? R$ 1 cada. No resumo da ópera: sai de lá com doze caixas de revistas.
Atribuo tudo isso à imediata empatia que tive com aquele inesquecível casal, cuja generosidade só agora começo a dimensionar. Os dois, então, levaram-me para casa. Nos despedimos depois de descarregar tudo aquilo na portaria do meu prédio. Eu disse para a senhora: "O seu pai deve estar feliz lá em cima porque eu jamais venderei as revistas que ele passou quase um século colecionando. Eu vou escrever livros com elas e depois acabarão em algum museu". Emocionados, nos despedimos com a promessa de um novo encontro no sábado seguinte. Afinal, eu tinha estado em apenas um dos quartos da casa.
No sabado seguinte, cheguei às 9h da manhã, como tinha combinado com o simpático casal. Seu João e dona Lourdes chegaram um pouco depois, com o carro cheio de caixas de papelão vazias. Agora teríamos mais tempo para conversar e pedi detalhes sobre a venda daquele acervo que tinham herdado.
Pergunto se tinham procurado donos de sebos para comprar o material. Sim, mas somente um aparecera para avaliar. O comprador ofereceu R$ 2 mil pelo que eu descobriria depois ser algo superior a 50 mil revistas e perto de dois mil livros, mais montanhas de suplementos de jornais. O que mais causou indignação a seu João, no entanto, foi o fato do interessado querer levar também a infinidade de quadros que o sogro havia pintado - a maioria de nus femininos.
Ele praticamente enxotou o sujeito dali. No dia seguinte, essa pessoa ligou de volta, tentando fechar o negócio por um valor um pouco maior. Era tarde demais. Seu João não fazia negócio com ele por valor nenhum. Mas, e o Mercado Livre, não valia a pena tentar por ali? "Aquilo não dá, demora muito, é tudo picado e precisamos esvaziar logo a casa para vendê-la e fazer a partilha" - disse-me mais ou menos assim. E assim adentramos o sobrado.
Percebi, então, que eu tinha pulado um quarto e ido para o segundo - onde estava o lote de Carioca que comprei. Seguimos a ordem dos cômodos e vi várias caixas lacradas com a descrição do conteúdo de cada uma anotado na parte de cima. Duas me chamaram a atenção. Lia-se: "Revistas de nus". Meio sem jeito, falei que aquelas revistas me interessavam muito porque estava prestes a lançar um livro sobre o tema - Maria Erótica e o clamor do sexo, que realmente sairia cinco meses depois. A filha do morador falecido disse, em seguida, meio sem jeito, que o pai gostava muito desse tipo de revista e que havia um quarto nos fundos entulhado delas. Viva!! Comemorei em pensamento!
Posso ver? "Claro". Abri a primeira caixa e vi vários pacotes amarrados com barbantes e protegidos dos dois lados por folhas grossas de cartolina. Havia um código comum em todas: "Revistas Brejeiras". Sim, Brejeiras significava nus, sexo, mulher pelada! O que encontrei nessas duas primeiras escavações não me lembro. Sei que eram coisas maravilhosas: nada mais nada menos que um apanhado geral das revistas eróticas no Brasil desde 1902.
Tinha ali muita coisa pré-histórica, como A Maçã e Selecta. Depois, dos anos 30 e 40, Copabana, Conselhos sexuais, Ciência e sexualidade, etc. Dos anos 50, títulos com vedetes seminuas e as chamadas "revistas de salão de barbeiro" - dezenas de títulos muito populares na época, com piadas libertinas e pinups ou fotos de garotas seminuas. Como Sorriso, Seleções de Rir Ilustrada, Bom Humor. E, ainda, as publicações dos clubes de naturismo, outra mania da época.
Abertas as caixas, disse que queria comprá-las. E partimos para o fundo da casa, onde supostamente havia muita revista de mulher pelada. E era mesmo só o que tinha. Coleções completas de Ele & Ela, Fairplay, Revista do Homem (depois, Playboy), Status, Fiesta, Fiesta italaina, Playboy americana, Lui etc. Todas impecavelmente novas.
Na prateleira do meio, mais montinhos maravilhosos de revistas brejeiras. De quebra, algo que não tem preço: perto de 50 catecismos originais de Carlos Zéfiro da década de 1950, que vejo na estante aqui, enquanto escrevo. Encontrei ainda diversos volumes encadernados de Mini-Fiesta, a revista de bolso que tanto frequentei na adolescência com começo da década de 1980. Folheei ali mesmo e me lembrei daquelas garotas outrora tão amadas e desejadas por mim. Já ia me esquecendo: deparei-me com várias revistas em quadrinhos eróticas da Edrel e da Grafipar também.
Dessa vez, voltei para a casa com nove caixas. Todas, absolutamente todas, só com revistas de sexo. O resto ficaria para a semana seguinte. Bom, não era o resto, mas quase tudo ainda, pois a exploração antropológica havia apenas começado.
O telefone tocou numa noite de quinta-feira de fevereiro e era Seu João. Queria avisar que eu precisava ir à casa da Vila Mariana no fim de semana seguinte sem falta, para ver o que mais me interessa do acervo que estava vendendo. Uma pessoa de Belo Horizonte, explicou ele, viria olhar tudo na outra semana e pretendia levar o que tivesse sobrado.
Seu interesse, explicou-me, era pelas revistas de cinema e ele me pediu para que não levasse nenhuma desse gênero, pois prometera a essa pessoa reservar tudo. Sou louco por cinema, fiquei maravilhado com edições raras de Cinearte, Cinefã e muitas outras que encontrei lá. Não toquei em nada e segui minha experiência arqueológica naquele sobrado em busca de outros tesouros.
Bom, até aqui já tinha visitado três quartos da casa. Voltamos ao primeiro quarto e observei o que tinha no guarda-roupa: preciosas máquinas fotográficas e uma quantidade imensa de filmes em super 8 - que nem procurei saber do que se tratava porque seria impossível levar aquilo para casa. Esse acervo seria comprado por uma pessoa de Belo Horizonte. No chão, estavam oito projetores bem antigos de filmes em 8mm e 16 mm. E material químico de revelação. Um dos passatempos do antigo morador era a fotografia - herança do pai, famoso fotógrafo paranaense.
O próximo passo seria um longo corredor, com pilhas e pilhas de livros e revistas (muitas O Cruzeiro), caixas lacradas, pastas de arquivos em grande quantidade. Dei uma geral e peguei muitos gibis com quadrinhos eróticos e revistas de nus pintados pelo dono da casa. Talentoso, traço personalíssimo e estiloso. Isso explica a quantidade de revistas eróticas em todos os cantos. Mais catecismos de Zéfiro e encadernados de títulos de sexo das décadas de 1970 e 1980.
Passei para as pastas. Estavam organizadas com etiquetas nas laterais. Eram mais de 50 daquelas de arquivos de escritório na cor cinza. Primeiro, encontrei a coleção completa com mais de mil números do suplemento FOLHETIM, da Folha de S. Paulo. Além de dossiês maravilhosos sobre personagens e temas ligados à cultura, inclusive quadrinhos, chamavam a minha atenção nesse tablóide as capas de nossos grandes cartunistas: Petchó, Angeli, Laerte, Fortuna e Alci. Vi aquilo e pensei num livro em cores com todas aquelas imagens incríveis.
As surpresas não pararam: algumas pastas traziam o suplemento infantil da Folha de toda a década de 1960, quando Maurício de Sousa era a grande estrela da publicação - que não levei e me arrependi depois. Noutra, mais exemplares do suplemento de quadrinhos da Folha da Noite dos anos 40 - eu havia levado o primeiro lote, a partir do número 1.
Alimentei, então, a esperança de encontrar algo muito valioso: exemplares de O Globo Juvenil, Suplemento Juvenil e A Gazeta Juvenil. Algo me dizia que essas pérolas esperavam por mim ali. Cacei como um cão perdigueiro. Vasculhei tudo com calma e meu faro estava certo: havia sim muitos O Globo Juvenil - a partir do número 3. Somando tudo, peguei duas centenas dessas três publicações capitais para a história dos quadrinhos no Brasil.
Nas outras pastas, muitas fotos originais de mulheres nuas das primeiras décadas do século. Provavelmente prostitutas paranaenses ou paulistanas. Quem as tirou? Quando? Nada foi escrito para identificá-las. Num canto, pastas gigantes de material fotográfico abrigavam dezenas de folhinhas de pinups e garotas seminuas dos anos 40 a 80. Nenhuma dobrada, todas em perfeito estado de conversação, cuidadosamente organizadas.
Tudo isso rendeu nada menos que 13 caixas, que teria de amontoar num taxi (pedi a um desses serviços que atende por telefone para mandar um carro grande). Não deu e deixei parte das caixas separada e lacrada para pegar na semana seguinte. Enquanto isso, pensava cada vez mais seriamente em levar a coleção completa de Vamos Ler!, com 800 exemplares. Afinal, ali tinha muita coisa de J. Carlos, Raul Perdeneiras e Belmonte, entre outros grandes artistas do humor gráfico. Seu João disse que faria um preço camarada. Não pensei muito e pedi para separasse para mim e avisasse o comprador de Belo Horizonte que já estava vendido.
Você, que aqui me lê, por acaso acha que a minha aventura naquela casa acabou aí? Que nada. Estava apenas começando. Sempre me intrigou a informação repetida diversas vezes de que no porão da casa - com altura de pouco mais de um metro - poderia ter coisas guardadas. A intriga virou curiosidade: e se abrigasse nas suas entranhas um acervo tão fantástico quanto o que estava na parte de cima? Antes de mais nada, eu precisava de coragem para entrar naquele lugar, provavelmente habitado por ratos, baratas e escorpiões. Decidi que faria isso na semana seguinte.
O comprador de Belo Horizonte veio e levou muitas caixas de livros e revistas e outros objetos que não sei precisar. Mas não arrematou tudo. E voltaria outras vezes para novas aquisições. Mas, como disse lá atrás, a quantidade de revistas e livros naquela casa era algo muito além da imaginação de qualquer mortal. E impossível de ser realmente avaliado em pouco tempo.
Antes de dar prosseguimento à minha aventura e à minha entrada no porão daquela casa, vou aqui revelar a quem pertenceu aquilo tudo. Usarei a seguir as informações que seu genro colocou na Wikipédia - na verdade, fiz um copy do texto que ele me mandou, formatei e eu mesmo postei na enciclopédia virtual. Em seguida, acrescento algumas observações:
Aquela casa era do senhor Loris Foggiatto (1913-2009), artista plástico, fotógrafo e professor de desenho paranaense radicado em São Paulo desde a década de 1930 e conhecido pelas gravuras e quadros com nus femininos. O pai dele, Domingos Foggiatto, foi fotógrafo da imprensa oficial do Estado do Paraná e considerado muito adiantado para a época, pioneiro nas artes plásticas e na fotografia, além de proprietário de dois cinemas, teatros e circos.
Loris chegou na capital paulista em 1934, e logo foi trabalhar como gráfico do jornal Folha da Noite (atual Folha de S. Paulo), onde trabalhou até 1969, quando ele se aposentou. Ainda jovem, a veia artística herdada do pai apareceu e ele começou a fotografar o cotidiano de São Paulo - deixou em sua casa mais de 10 mil imagens entre ampliações e negativos.
Em meados da década de 1940, Loris foi aprender desenho na Associação Paulista de Belas Artes. Destacou-se como aluno dos artistas Inocêncio Borghese e Aurélia Cavalcante. Mais tarde, aperfeiçoou-se com os artistas Durval Pereira, Colette Pujol e Waldemar da Costa. Pela aptidão que tinha especialmente em desenho, logo passou de aluno para professor. Deu aulas de desenho e pintura por mais de 40 anos na APBA. Muitos pintores renomados tiveram aulas com o Professor Foggiatto.
Aliás, ele participou da diretoria da APBA por duas décadas. Deu aulas de nu artístico com modelos ao vivo, por varias décadas, quando o nu se tornou uma especialidade sua. Foi um grande apreciador da beleza feminina, produzindo uma enorme quantidade de desenhos e quadros que têm um traço especial evidenciando a sensualidade feminina, não explorando o erotismo.
Dentre os seus trabalhos premiados, podemos destacar o Salão Paulista de Belas Artes, onde teve cinco trabalhos premiados; Salão da Associação Paulista de Belas Artes (cinco prêmios) e teve mais 21 quadros premiados em diversos Salões de artes plásticas. Realizou também exposições individuais como na Galeria Itaú (1979), Hotel Hilton (1987 e 1990), Centro Cultural (1988) e Centro Cultural de Bertioga (1999 e 2000). Participou ainda de júri de 15 Salões de Belas Artes.
Seu Lóris, como era conhecido, morreu serenamente na casa da filha, numa cidade da região metropolitana de São Paulo, pouco antes do almoço familiar de um domingo, dia 22 de março de 2009. Conversou normalmente com todos e faleceu cercado pelas pessoas que mais gostava. Muitos lembravam dele como uma pessoa de temperamento forte, mas encantador como prosador. Adora cortejar as mulheres, que amava indistintamente e imortalizava em quadros. Tinha memória prodigiosa e histórias maravilhosas para contar. Cuidava de sua fantástica biblioteca com muito zelo. Reclamava se alguma faxineira tirasse qualquer coisa do lugar.
Ficara viúvo na década de 1980 e desde então vivia sozinho. Eu jamais soube da sua existência e tenho certeza de que se o tivesse conhecido, seríamos grandes amigos, a contar e a relembrar de histórias que ele viveu nos primórdios do século 20. Teríamos falado dos gibis pré-históricos, de sua amizade com o cartunista Belmonte, de sua paixão por pinups e mulher pelada, que também compactuo.
Ele, enfim, teria confiado aquilo tudo para que pudesse fazer novas pesquisas e escrever livros. Se nada acontece por acaso, talvez isso explique que o destino desse um empurrão e promovesse esse tardio encontro. Ele lá e eu cá, a zelar de suas queridas revistas para que isso se perpetue por muito tempo, pois nada, absolutamente nada, será vendido ou trocado.
Desde o primeiro dia em que estive no sobrado da Vila Mariana - ah, esqueci de dizer que fica na rua Umberto I, quase em frente ao começo da rua Pelotas -, eu ouvia a filha de seu Loris falar de um tal porão que havia ali, onde ela e, depois, seus filhos, brincaram por toda a infância. Havia da parte dela e do marido a suspeita de que no poderia ter mais revistas, uma vez que até aquele momento muitas coisas que eles lembravam não tinham sido ainda encontradas, como os 21 primeiros números de O Pato Donald.
As semanas passaram e estávamos em abril. Outros compradores apareceram por lá, mas ninguém se interessara em saber onde ia dar aquela pequena entrada de 1 metro por 60 centímetros, aproximadamente. Um dia, quando as chances de encontrar mais revistas preciosas pela casa começava a rarear, desci as escadas até o quintal, acompanhado da filha de seu Loris. Tentei olhar pelo cercado e vi apenas uma montanha de coisas velhas: frascos de remédios antigos, abajures, vasos, martelos, lâmpadas, reveladores de filmes, móveis quebrados etc.
Um metro adiante começava o breu. Consegui abrir a grade e visualizei uma pilha de revistas. Estiquei o braço e puxei com muita dificuldade. Tirei dois montinhos razoáveis. Eram os 100 primeiros números novinhos da revista Veja, sem qualquer indício de traça ou umidade.
Rapidamente comecei a tirar as tralhas e cheguei à Ilha do tesouro. Nos três metros adentro, havia montanhas de revistas. Preciosidades tão valiosas quanto as que havia tirado de lá de cima. O lugar era de difícil acesso porque tinha pouco mais de um metro de altura por um de largura - nessa parte havia um corredor, estreitado por largas prateleiras. Não pensei duas vezes e liguei para um amigo colecionador, cujo nome vou preservar aqui. Eu já havia comentado com ele sobre minhas aquisições e falei rapidamente: "Largue tudo que está fazendo, pegue um taxi e venha imediatamente para o seguinte endereço. Ah, e traga uma lanterna".
Não me perguntou nada. Imaginou do que se tratava e apenas disse: "Estou correndo praí". Em meia hora ele estava lá. Por que o chamei? Primeiro, pela amizade e pela gratidão. Depois, pelo tamanho físico. Eu tenho mais de 1,85m de altura e ele é baixinho. Tinha uma estatura possível para adentrar o porão até o fundo. E ele começou a me entregar pilhas e pilhas de revistas, depois de, pacientemente, tirar toneladas de tralhas do nosso caminho. Fizemos um pacto: cada coleção de quadrinhos dali retirada disputaríamos no par ou impar para ver quem escolheria primeiro. Ganhei a primeira e escolhi um montinho de Gibi Trissemanal, que incluia o volume 1, aquele com Charlie Chan na capa.
Foi quando tive um grande susto. Enquanto eu folheava aquelas maravilhas, o tempo passou e chamei por meu amigo. Ele não respondeu. Gritei várias vezes e nada. Entrei em pânico, imaginei que ele tinha desmaiado ou morrido devido a algum bicho que o picou ou por falta de ar. Os donos da casa vieram ver o que estava acontecendo e nos preparamos para chamar os bombeiros. Até que vi a luz da lanterna se mover lá dentro. E o sujeito apareceu em seguida, completamente imundo, para dizer que havia muitos outros quartos no porão com muitas revistas. Tinha também perto de 30 montes de jornais, sobre os quais falarei no próximo post.
A cada nova descoberta de gibis raros, ele gritava de lá, como se fosse uma senha. E começaram a sair montanhas de Pato Donald, Mickey, Tio Patinhas, Mônica e Cebolinha (Abril) desde o número 1, Pernalonga, Almanaque Disney, Diversões Juvenis. Enfim, boa parte do que a Abril publicou de 1950 a 1979.
Por cinco finais de semanas seguidos, tiramos coisas do porão. Isto é, revistas. Alguns exemplos: o resto da coleção de Carioca, Fon Fon!, Careta, Jornal das Moças, A Cigarra, Panorama e outras que eu tinha comprado e cujas numerações estavam incompletas. Tiramos de lá mais uma série do 1 ao 100 de Manchete, centenas de O Cruzeiro, inclusive os primeiros números, outra coleção de Quatro Rodas.
Num outro dia, colhemos centenas de exemplares da famigerada Seleções do Digest, bíblia do anticomunismo cristão ocidental. Num dos quartos dos fundos, esse amigo achou os 90 primeiros números do Pato Donald e os 50 primeiros de Mickey, mais Seleções Coloridas do 1 ao 17, considerada a primeira publicação da Ebal, de Adolfo Aizen. Não seria justo com ele, que tanto se sujou e ralou naquele lugar, dividir essas preciosidades no par ou impar e o deixei ficar com tudo.
Afinal, eu tinha encontrado maravilhas no porão, que também passei a explorar. Como um jornal de quadrinhos francês, que circulou a partir de 1902 - e cujo título vou ficar devendo porque seus volumes estão perdidos entre as caixas que ainda permanecem lacradas. E o alemão Allers Familj-Journal, cujos exemplares datam a partir de 1908. Todos em ótimo estado de conservação e que deixariam extasiados colecionadores e pesquisadores franceses e alemães. Outra descoberta: o Jornal do Lar, em formato standart (grande), dirigido a mulheres e publicado em 1932, mas que, na verdade, é um elo perdido da chegada dos comics no Brasil. Era impresso em cores.
Uma publicação que encontrei em grande quantidade em todos os cantos da casa, principalmente no porão e que eu tinha me esquecido de citar (como dezenas de outras), foi o semanário humorístico paulistano O Governador, que teve mais de mil números. A publicação circulou entre as décadas de 1930 e 1940.
Continuei a levar caixas e caixas para casa por meses. Mas havia no porão algo de muito valioso que, à primeira vista, não interessou a ninguém. Por causa disso, eu passaria meus próximos finais de semanas ao longo de quatro meses enfiado no porão daquela casa mágica.
De janeiro a agosto de 2010, poucos foram os finais de semana em que não passei pelo menos o sábado na casa de seu Loris Foggiatto, na Vila Mariana, São Paulo. Eu brincava com o amigo com quem dividia as buscas no porão que aquele sobrado era mesmo sobrenatural, como desconfiava uma parente do antigo dono. Afinal, saíamos para ir embora e, na volta seguinte, aparecia uma coleção de gibis ou uma edição rara num lugar onde nós havíamos vasculhado minunciosamente.
Perguntava a seu João se alguém havia estado ali durante a semana e ele garantia que não. Não tinha motivos para não acreditar nele, claro. Lembro do número 1 da revista MAD, da Vecchi, de 1975, que apareceu do nada onde sempre passávamos. Ou das novas pilhas de almanaque de farmácia que surgiam de vez em quando. Mas aconteciam surpresinhas normais como me deparar com algum exemplar do Globo Juvenil ou do Suplemento Juvenil no meio de cadernos de turismo, por exemplo.
Desde o primeiro dia, a filha de seu Loris falava que o pai havia sido muito amigo do cartunista paulistano Benedito Carneiro Bastos Barreto, o Belmonte (1896-1947), um dos mais importantes artistas gráficos do país na primeira metade do século 20, criador do personagem Juca Pato.
Se Belmonte morreu em 1947 e Loris trabalhou na gráfica da Folha nos 13 anos anteriores, devem mesmo ter convivido todo esse tempo nos corredores jornal. É preciso lembrar que Loris era um excelente desenhista e promissor pintor. Os dois, portanto, tinham interesses em comum. (Ironicamente, Belmonte morreria numa clínica que ficava exatamente na rua onde seu Loris passou toda a vida, a Umberto I). Sua filha afirmava com convicção que havia na casa todos os livros de Belmonte, mais uma pasta com coisas pessoais do artista - não faço ideia do que se trata porque a mesma foi adquirida pelo comprador de Belo Horizonte.
Só para situar, Belmonte reinou absoluto em seu tempo na imprensa paulistana, enquanto no Rio brilhavam nomes como J. Carlos e Raul Pederneiras - de quem ele era muito amigo. Publicou mais de uma dezena de livros - boa parte com seus cartuns relacionados à Segunda Guerra Mundial. Escreveu também volumes de crônicas e contos humorísticos (como o clássico "Idéias de João Ninguém", de 1935) e estudos históricos principalmente sobre São Paulo ("No tempo dos bandeirantes"; "Brasil de outrora" e "Costumes da América Latina"). Também ilustrou as obras infantis de Monteiro Lobato - foi o primeiro de muitos artistas a dar forma aos personagens do Sitio do Pica-pau Amarelo.
O artista passaria boa parte da vida no grupo Folhas - hoje responsável pelos jornais Folha de S. Paulo e Agora. Foi ali que, em 1929, Belmonte transformou em sucesso seu mais famoso personagem, Juca Pato, nas páginas da Folha da Noite. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele ganhou fama mundial ao usar o humor para combater os países do Eixo - Alemanha, Itália e Japão - e por tirar sarro das incoerências das três maiores potências do mundo - as capitalistas Estados Unidos, Inglaterra e a comunista União Soviética.
Nas minhas buscas pela casa de seu Loris, nada encontrei dele. Até que seu genro, gentilmente, lembrou-se que havia levado para casa um exdemplar de "A Guerra de Juca", com a reunião de caricaturas publicadas até 1940. Deu-me de presente, claro. Talvez tenha olhado no Mercado Livre o valor médio do mesmo, R$ 400, mas nada cobrou, em mais um de muitos gestos de gentileza desse ser humano único.
Minhas esperanças quanto a Belmonte renasceram no porão da casa. Seu Loris havia trabalhado na Folha de 1934 a 1969 e, de acordo com a sua filha, todas aquelas montanhas de jornais que ele ali havia depositado cobriam exatamente esse período. "Papai sempre chegava com uma pilha de jornais nas mãos e, como tinha mania de guardar tudo, colocava no porão depois que a gente lia". Sim, eu percebi que eram exemplares dos três jornais que o grupo Folhas publicou no período: Folha da Noite, Folha da Tarde e Folha da Manhã. O primeiro, mais popular. O segundo, elitista, existia para concorrer com O Estado de S. Paulo e A Gazeta.
Pedi ao genro de seu Loris para me deixar retirar daqueles jornais - boa parte devorada por cupins e traças - as páginas que tinham caricaturas e ilustrações de Belmonte. O ex-gráfico da Folha me deu uma ajuda sem querer. Ele havia separado perto de dez pilhas somente com os cadernos de domingo da Folha da Malhã, o "Suplemento", que tinha jeito de revista e que sempre trazia na capa exclusivamente um desenho de página inteira - tamanho standart, o maior de todos - feito por Belmonte. Um mais belo que outro, meticulosamente construídos a bico de pena.
Não mais que três tinham sido comprometidos pelas traças. No total, tirei de lá perto de 150 capas cinematográficas, o mais fantástico tesouro da história desse incansável cartunista. Só isso daria um livrão de capa dura de babar. Um detalhe: no meio há edições especiais com todas as páginas ilustradas por ele, o que totalizariam um volume de 500 páginas, no mínimo.
Eu olhei tanto aqueles jornais por tantos dias que me familiarizei com o esquema que deixava Belmonte como a estrela dos dois principais jornais do grupo. De segunda a sábado, ele publicava um cartum por dia na Folha da Noite. Na capa ou na página 4. Durante a guerra, por causa da repercussão de seus desenhos contra Hitler, ele ocupou metade de toda a capa em centenas de edições. No domingo, a Folha da Manhã reproduzia todos os cartuns da semana que saíram na Folha da Noite e usava seu traço na capa do Suplemento.
Dos cartuns diários, juntei perto de dois mil, creio. Desses, perto de 400 tinham Hitler como personagem - quase sempre a figura central. Eu, aliás, já escaneei todos e estou à procura de um editor para publicar um belo volume, sob o título CONCERTO EM DÓ MAIOR. Até descobri que uma querida amiga tem o telefone da filha dele, para que possa lhe pedir para autorizar a publicação. Outros temas recorrentes nesses cartuns eram a política nacional e os problemas urbanos de São Paulo.
Não sei o que fazer com o inacreditável acervo de Belmonte que reuni. Meus planos seriam, além do livro com Hitler como tema, um álbum de luxo com as capas do Suplemento da Folha da Manhã. Talvez arrisque uma biografia, mas só depois que Andrea Nogueira publicar a dela - aliás, ofereci-me para ajudá-la a encontrar um editor, o que faço no momento. Andrea é a maior autoridade em Belmonte no Brasil.
Tudo que relatei aqui sobre os mais de dez mil revistas e livros - além de incontáveis pastas de arquivos de folhinhas antigas (com pinups), recortes de jornais e revistas etc - que adquiri do genro e da filha de seu Loris Foggiatto me deixa meio frustrado porque, ao reler os posts anteriores, continuo com a sensação de que não consegui dimensionar essa experiência única que, creio, jamais se repetirá comigo e dificilmente com qualquer outro mortal.
Eu recordei tudo diretamente no espaço de redação do blog a partir de minhas memórias e, por falta de tempo, não consegui olhar o acervo ou abrir as muitas caixas e pacotes que ainda estão lacrados. Eu citei muito pouco do que levei para casa. As revistas em quadrinhos e de humor raras, as coleções completas de títulos de outras áreas, os cartões postais, as fotos (centenas ou milhares) originais de prostitutas nuas, as milhares de revistas eróticas que traçam um apanhado fantástico desse segmento - que seu Loris chamava de revistas brejeiras -, cada um renderia ao menos um post inteiro aqui.
E por que dar publicidade a isso na Internet? Exibicionismo meu? Quem me conhece sabe que não. O meu maior sonho é que tudo isso vá parar num museu ou arquivo público, numa instituição seriamente constituída, aberta ao público, onde pesquisadores possam estudar esse inacreditável material, com o devido cuidado e segurança que algo assim demanda. Seria um espaço com funcionários bem orientados que atenderiam esses visitantes.
Tudo isso ficaria à disposição para consulta por pouco tempo, por causa de sua fragilidade causada com o desgaste do tempo, pois meu projeto prevê que tudo seja digitalizado e acessado de qualquer lugar do planeta pela Internet, guardados os devidos cuidados sobre direitos autorais, se for o caso.
O maior obstáculo que imagino seria um órgão público topar manter no acervo as publicações de sexo, uma vez que o preconceito sobre o tema ainda é imenso, num grau de estupidez bem acima do que se imagina. Quando escrevi o livro Maria Erótica e o Clamor do Sexo, fiquei impressionado sobre o quanto é possível contar por meio dessas revistas e livros a história da sexualidade brasileira, dos costumes, dos hábitos e das tradições, da emancipação das mulheres, da repressão nos nossos regimes autoritários, da censura, do desejo de liberdade, da luta contra o machismo, da repressão ao sexo feminino em todos os tempos e épocas.
Assumo aqui a palavra de absolutamente nada cobrar sobre tudo isso que consegui juntar se aparecer alguma instituição com esses requisitos. Sim, desde que tenha a segurança de que tudo isso será realmente preservado ao longo de décadas e não simplesmente abortado por algum governante idiota, desses que destroem o que o anterior fez.
Que se mantenha esse material para que futuras gerações possam conhecer e estudar esse tempo - o século 20, principalmente - em que todas as emoções, sensações, desejos e fantasias de gerações de brasileiros passavam por uma folha impressa. Por muitas delas. Um tempo em que o olhar fascinado pela imagem, desenho ou foto, combinava com o toque tátil sobre o papel e o cheirinho de tinta da revista que acabou de sair da gráfica.
Sinto a presença de seu Loris no acervo que pretensamente assumi a missão de preservar. Vejo-me na obrigação de guardar um tesouro que ele por tanto tempo se empenhou em zelar - talvez para algum propósito que jamais saberei ou pelo simples prazer de colecionar. Seu Loris, na verdade, não era um colecionador, não saía por aí atrás de títulos para completar suas coleções. Ele apenas guardava as revistas que comprava e lia, com o cuidado de preservá-las das ações do tempo, dos insetos e roedores.
Na solidão da velhice, ao contempar tudo aquilo, é possível que ele se sentisse na companhia de velhos fantasmas de sua infância e juventude. Ou que passasse o tempo a folhear aquelas revistas como uma espécie de máquina do tempo dos melhores momentos de sua vida. De certo modo, ele estava preso àquele tempos idos, vividos, mas não esquecidos, como também fazemos ao recorrer a velhos discos ou aos gibis de diferentes períodos de nossas vidas.
Ao especular sobre a ligação de seu Loris com aquele tão fascinante mundo que criou ao seu redor, fico a imaginar que tipo de contato tomamos com objetos assim que, acredito, vão muito além do mero preservar para decorar uma casa ou por puro exibicionismo intelectual. Toda vez que leio um livro, por exemplo, passo a estabelecer com aquele exemplar e seu autor uma cumplicidade até mesmo familiar, diria assim, uma proximidade que jamais se concretizará, claro.
Daí sempre acharmos que somos íntimos de nossos autores preferidos quand os encontramos. Toda vez que leio um livro, bom ou ruim, nunca deixo de terminá-lo. E procuro guardá-lo na estante como algo com o qual criei uma relação que não acabará jamais porque alguns fragmentos ou a soma de muitos permanecerão em minha memória para sempre.
Assim sou eu e os livros, as revistas, os recortes, os arquivos, as pastas e as memórias dos outros, que capto por meio de um gravador ou pela ponta da caneta sobre o papel. Sou tentado a imaginar que o talentoso Loris - jamais reconhecido à altura que merecia como artista plástico - tinha um casamento eterno parecido dentro daquela caixa de lembranças e saudades onde viveu a maior parte dos 96 anos de existência. Não o admiro só por isso.
Muitos amigos conhecem essa história que vou contar aqui. Só que vou fazê-lo com mais detalhes, por que é algo muito raro de acontecer com quem coleciona ou pesquisa sobre quadrinhos no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Sim, porque jamais me considerei colecionador. Apenas leitor e interessado em sua história editorial no Brasil.
Vamos ao fato.
Janeiro de 2010. Um dia qualquer que não me lembro com precisão. Estava eu atolado na biografia do sambista baiano Assis Valente, aquele que fez clássicos como "Cai cai balão", "Boas festas" (Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel) e "Brasil pandeiro". Tarefa oceânica. Não é fácil falar de um cara que morreu há 52 anos, pois todos os seus contemporâneos praticamente partiram desta para melhor. Restava-me vasculhar arquivos de jornais e revistas para preencher lacunas importantes desse artista que tentou se matar seis vezes, até ter sucesso na última.
Descobri, então, que a revista semanal Carioca, do grupo editorial A Noite (circulou entre 1936 e 1955), publicou muita coisa importante sobre Assis. Era semanal, o que demandaria uma pesquisa extensa e intensa na Biblioteca Nacional do Rio Janeiro. Fui ao site Mercado Livre para ver se havia algum exemplar à venda e cuja descrição citasse o compositor. Encontrei vários números, porém nenhum com o nome de Assis citado e cujos preços variavam de R$ 20 a R$ 40.
Desânimo total. Foram lançados ao menos 800 números da revista, em 19 anos. Era preciso mesmo procurar uma biblioteca. Mas eis que vi um anúncio inusitado: alguém vendia 25 números de Carioca por R$ 50 - depois saberia que se tratavam dos volumes 1 a 25, um preciosidade. Ou seja, R$ 2 cada. Apertei o clic e comprei a mercadoria, com alguma desconfiança, pois é muito comum a confusão de que se está vendendo um lote, mas o preço se refere a cada exemplar. Enfim, não me parecia possível que custassem tão pouco.
Esperei um mês e não recebi nenhum retorno do vendedor com o número da conta bancária para fazer o depósito. Já tinha até me esquecido. No desespero em busca de novas informações sobre Assis, lembrei da compra. Liguei para o vendedor e um senhor simpático me atendeu - descobri depois que tinha 75 anos. Disse se lembrar da minha compra e pediu desculpas pela falta de retorno, pois havia machucado gravemente o braço esquerdo. Prometeu me passar o número da conta por e-mail.
Perguntei se ele tinha mais Carioca. "Bastante", respondeu ele.
E outras revistas? "Sim".
Quadrinhos? "Sim".
Pode me mandar uma lista? "Sim".
A relação chegou no dia seguinte, via e-mail. Era pequena e incluia títulos como O Cruzeiro e Shimmy, lendária revista erótica da década de 1920 que nego vendia na época pelo Mercado Livre a R$ 390 cada. Essa publicação era muito importante para mim porque nela Assis publicou uma série de cartuns no ano de 1928, quando tentou a carreira de cartunista antes de virar protético e compositor.
Não resisti e liguei para o senhor imediatamente.
Seu João (nome fictício) me contou uma história que não presteio muita atenção: essas revistas estavam em bom estado e pertenceram ao sogro dele, que morreu no ano passado, aos 96 anos de idade. Ele me disse que morava numa cidadezinha da Grande São Paulo e propôs que eu fosse no sábado seguinte à casa onde estavam as tais revistas - o local permanecera fechado desde a morte do dono.
Encontrei um sobrado de cinco quartos. Ficava na Vila Mariana, em São Paulo. Cheguei por volta das 14h e ele e a esposa me esperavam. Duas pessoas muito gentis. Entrei na casa e não acreditei no que vi: dezenas de milhares de revistas ensacadas com etiquetas que as identificavam. Eram quartos e mais quartos semelhantes: estantes abrigavam aquele mundo inimaginável de revistas.
Eu me aproximei de uma das prateleiras e o que vi me provocou uma tremedeira nas pernas. Não podia acreditar que estava naquele lugar e que aquilo tudo realmente era real.
Tentei falar, o coração acelerou e comecei a gaguejar com que estava diante de mim: cerca de QUINHENTOS NÚMEROS DE O TICO-TICO, publicados entre 1908 e 1957.
Dos muitos pacotes plásticos cuidadosamente identificados com etiquetas havia centenas de números de O Tico-Tico - saberia depois que eram vários anos completos, entre 1915 e 1935, numa média de 52 números para cada ano. Meus olhos repousaram em quantidade semelhante da revista semanal de humor O Malho, marco do jornalismo e do humor gráfico, lançada em 1902 e que circulou até a década de 1950. Noutro canto, havia uma pilha de almanaques anuais de O Tico-Tico (o mais antigo, de 1909, que muita gente pensava ser lenda urbana). Noutro canto, a revista literária VAMOS LER!, do número 1 ao 800, coleção completa, sem faltar nada.
A casa era um biblioteca fantástica, que deixaria Jorge Luis Borges em êxtase. Principalmente para os fãs de quadrinhos. De 1940 a 2008, o solitário morador daquele lugar colecionou todos os suplementos de comics que saíram em jornais de São Paulo, principalmente na Folha da Noite, Folha da Manhã e Folha de S. Paulo. Estavam todos organizados em pastas e empilhados. O Suplemento de Quadrinhos, iniciado em 1940, estava completo. Muitos livros sobre fotografia, cinema e humor estavam numa prateleira - inclusive os de Belmonte, o grande chargista paulistano e amigo do dono do local por toda a vida.
Havia centenas de exemplares de O Cruzeiro, Manchete, Eu sei Tudo, Fon Fon!, A Cigarra, Jornal das Moças, Revista da Semana, Revista do Globo. Somam-se a isso: Gibi semanal (dezenas de números, inclusive o 1), Guri, Gibi Mensal, coleção completa da Edição Maravilhosa, desde a primeira série, em formato reduzido; centenas de exemplares de O Pato Donald, Mickey e os primeiros Almanaques do Tio Patinhas, antes de virar revista mensal. Bote na conta mais centenas de gibis de terror da La Selva e da Outubro, as coleções Grandes Figuras e Epopeia, da Ebal; Fantasma, Flecha Vermelha, Mandrake e muitos outros da RGE.
Foi só isso que consegui discernir nesse primeiro dia. E veio na minha mente um só pensamento: seriam necessários milhares e milhares de reais para comprar aquilo tudo. Se ele pedisse R$ 100 por cada O Malho e O Tico-Tico, daria R$ 100 mil. Se pedisse R$ 300 por cada Shimmy, o lote totalizaria mais de R$ 15 mil. Pobre de mim. E não havia porque não pensar assim. Afinal, ele conhecia o Mercado Livre, paraíso dos especuladores que hiperinflacionaram os gibis.
Até que vi uma pasta grossa, preta, com a ponta de um jornal de quadrinhos. Seria o Suplemento Juvenil ou O Globo Juvenil, lendários tablóides que trouxeram a indústria dos quadrinhos para o Brasil na década de 1930? Nada disso. Pelo menos por enquanto, nada havia dos dois títulos. Tinha ali, simplesmente, o Santo Graal dos quadrinhos no Brasil: quatro dezenas de números de revistas e suplementos de HQ que eu nunca tinha ouvido falar, que circularam entre as décadas de 1910 e 1920. Não encontrara registros daquilo em nenhuma biblioteca pública, nem na Nacional do Rio de Janeiro. E olha que isso é uma obsessão minha.
Um exemplo? A revista Carlitos. Outro? O suplemento infantil da revista Fonfon, de 1913. Ou Mundo Infantil, conhecido, publicado pela Vecchi a partir de 1929. Eu não conseguia acreditar naquilo. Mas, como era possível aquilo tudo ter sobrevivo ao tempo, às fogueiras que queimavam gibis, ao assédio dos colecionadores? Pensei rápido: custe o que custar, eu preciso comprar tudo que está nesta pasta. Assim, poderia completar a história que comecei a contar com A Guerra dos Gibis 1. Tentando não mostrar interesse, perguntei quanto custava aquele lote.
O senhor de 75 anos se limitou a dizer: "Mas, meu filho, isso aí é muito velho, está caindo aos pedaços". Não, não estava. Bom, estava mas me interessava muito. Mais do que qualquer coisa. "Mesmo assim, gostaria de levar. O senhor me vende? " E ele: "Não, não vendo. Pode levar de presente para você". Eu ainda não fazia ideia de que estava diante de uma das pessoas mais generosas que cruzei em minhas quatro décadas no planeta terra. E as Shimmy, por quanto vende cada uma? Resposta: "Ora, isso te interessa mesmo? Pode levar de presente".
E ele desviou a conversa de volta a Carioca. Queria saber se levaria mais exemplares. Disse que sim e ele falou que faria todo o lote restante por um bom preço - menos de R$ 1 cada. Aquilo não podia estar acontecendo. Encorajado, perguntei pelo preço de cada O Malho, O Tico-Tico e Edição Maravilhosa. Mesma coisa, R$ 1 real cada. E os almanaques natalinos de O Tico-Tico e Juquinha (estes, de 1916 a 1935)? R$ 1 cada. No resumo da ópera: sai de lá com doze caixas de revistas.
Atribuo tudo isso à imediata empatia que tive com aquele inesquecível casal, cuja generosidade só agora começo a dimensionar. Os dois, então, levaram-me para casa. Nos despedimos depois de descarregar tudo aquilo na portaria do meu prédio. Eu disse para a senhora: "O seu pai deve estar feliz lá em cima porque eu jamais venderei as revistas que ele passou quase um século colecionando. Eu vou escrever livros com elas e depois acabarão em algum museu". Emocionados, nos despedimos com a promessa de um novo encontro no sábado seguinte. Afinal, eu tinha estado em apenas um dos quartos da casa.
No sabado seguinte, cheguei às 9h da manhã, como tinha combinado com o simpático casal. Seu João e dona Lourdes chegaram um pouco depois, com o carro cheio de caixas de papelão vazias. Agora teríamos mais tempo para conversar e pedi detalhes sobre a venda daquele acervo que tinham herdado.
Pergunto se tinham procurado donos de sebos para comprar o material. Sim, mas somente um aparecera para avaliar. O comprador ofereceu R$ 2 mil pelo que eu descobriria depois ser algo superior a 50 mil revistas e perto de dois mil livros, mais montanhas de suplementos de jornais. O que mais causou indignação a seu João, no entanto, foi o fato do interessado querer levar também a infinidade de quadros que o sogro havia pintado - a maioria de nus femininos.
Ele praticamente enxotou o sujeito dali. No dia seguinte, essa pessoa ligou de volta, tentando fechar o negócio por um valor um pouco maior. Era tarde demais. Seu João não fazia negócio com ele por valor nenhum. Mas, e o Mercado Livre, não valia a pena tentar por ali? "Aquilo não dá, demora muito, é tudo picado e precisamos esvaziar logo a casa para vendê-la e fazer a partilha" - disse-me mais ou menos assim. E assim adentramos o sobrado.
Percebi, então, que eu tinha pulado um quarto e ido para o segundo - onde estava o lote de Carioca que comprei. Seguimos a ordem dos cômodos e vi várias caixas lacradas com a descrição do conteúdo de cada uma anotado na parte de cima. Duas me chamaram a atenção. Lia-se: "Revistas de nus". Meio sem jeito, falei que aquelas revistas me interessavam muito porque estava prestes a lançar um livro sobre o tema - Maria Erótica e o clamor do sexo, que realmente sairia cinco meses depois. A filha do morador falecido disse, em seguida, meio sem jeito, que o pai gostava muito desse tipo de revista e que havia um quarto nos fundos entulhado delas. Viva!! Comemorei em pensamento!
Posso ver? "Claro". Abri a primeira caixa e vi vários pacotes amarrados com barbantes e protegidos dos dois lados por folhas grossas de cartolina. Havia um código comum em todas: "Revistas Brejeiras". Sim, Brejeiras significava nus, sexo, mulher pelada! O que encontrei nessas duas primeiras escavações não me lembro. Sei que eram coisas maravilhosas: nada mais nada menos que um apanhado geral das revistas eróticas no Brasil desde 1902.
Tinha ali muita coisa pré-histórica, como A Maçã e Selecta. Depois, dos anos 30 e 40, Copabana, Conselhos sexuais, Ciência e sexualidade, etc. Dos anos 50, títulos com vedetes seminuas e as chamadas "revistas de salão de barbeiro" - dezenas de títulos muito populares na época, com piadas libertinas e pinups ou fotos de garotas seminuas. Como Sorriso, Seleções de Rir Ilustrada, Bom Humor. E, ainda, as publicações dos clubes de naturismo, outra mania da época.
Abertas as caixas, disse que queria comprá-las. E partimos para o fundo da casa, onde supostamente havia muita revista de mulher pelada. E era mesmo só o que tinha. Coleções completas de Ele & Ela, Fairplay, Revista do Homem (depois, Playboy), Status, Fiesta, Fiesta italaina, Playboy americana, Lui etc. Todas impecavelmente novas.
Na prateleira do meio, mais montinhos maravilhosos de revistas brejeiras. De quebra, algo que não tem preço: perto de 50 catecismos originais de Carlos Zéfiro da década de 1950, que vejo na estante aqui, enquanto escrevo. Encontrei ainda diversos volumes encadernados de Mini-Fiesta, a revista de bolso que tanto frequentei na adolescência com começo da década de 1980. Folheei ali mesmo e me lembrei daquelas garotas outrora tão amadas e desejadas por mim. Já ia me esquecendo: deparei-me com várias revistas em quadrinhos eróticas da Edrel e da Grafipar também.
Dessa vez, voltei para a casa com nove caixas. Todas, absolutamente todas, só com revistas de sexo. O resto ficaria para a semana seguinte. Bom, não era o resto, mas quase tudo ainda, pois a exploração antropológica havia apenas começado.
O telefone tocou numa noite de quinta-feira de fevereiro e era Seu João. Queria avisar que eu precisava ir à casa da Vila Mariana no fim de semana seguinte sem falta, para ver o que mais me interessa do acervo que estava vendendo. Uma pessoa de Belo Horizonte, explicou ele, viria olhar tudo na outra semana e pretendia levar o que tivesse sobrado.
Seu interesse, explicou-me, era pelas revistas de cinema e ele me pediu para que não levasse nenhuma desse gênero, pois prometera a essa pessoa reservar tudo. Sou louco por cinema, fiquei maravilhado com edições raras de Cinearte, Cinefã e muitas outras que encontrei lá. Não toquei em nada e segui minha experiência arqueológica naquele sobrado em busca de outros tesouros.
Bom, até aqui já tinha visitado três quartos da casa. Voltamos ao primeiro quarto e observei o que tinha no guarda-roupa: preciosas máquinas fotográficas e uma quantidade imensa de filmes em super 8 - que nem procurei saber do que se tratava porque seria impossível levar aquilo para casa. Esse acervo seria comprado por uma pessoa de Belo Horizonte. No chão, estavam oito projetores bem antigos de filmes em 8mm e 16 mm. E material químico de revelação. Um dos passatempos do antigo morador era a fotografia - herança do pai, famoso fotógrafo paranaense.
O próximo passo seria um longo corredor, com pilhas e pilhas de livros e revistas (muitas O Cruzeiro), caixas lacradas, pastas de arquivos em grande quantidade. Dei uma geral e peguei muitos gibis com quadrinhos eróticos e revistas de nus pintados pelo dono da casa. Talentoso, traço personalíssimo e estiloso. Isso explica a quantidade de revistas eróticas em todos os cantos. Mais catecismos de Zéfiro e encadernados de títulos de sexo das décadas de 1970 e 1980.
Passei para as pastas. Estavam organizadas com etiquetas nas laterais. Eram mais de 50 daquelas de arquivos de escritório na cor cinza. Primeiro, encontrei a coleção completa com mais de mil números do suplemento FOLHETIM, da Folha de S. Paulo. Além de dossiês maravilhosos sobre personagens e temas ligados à cultura, inclusive quadrinhos, chamavam a minha atenção nesse tablóide as capas de nossos grandes cartunistas: Petchó, Angeli, Laerte, Fortuna e Alci. Vi aquilo e pensei num livro em cores com todas aquelas imagens incríveis.
As surpresas não pararam: algumas pastas traziam o suplemento infantil da Folha de toda a década de 1960, quando Maurício de Sousa era a grande estrela da publicação - que não levei e me arrependi depois. Noutra, mais exemplares do suplemento de quadrinhos da Folha da Noite dos anos 40 - eu havia levado o primeiro lote, a partir do número 1.
Alimentei, então, a esperança de encontrar algo muito valioso: exemplares de O Globo Juvenil, Suplemento Juvenil e A Gazeta Juvenil. Algo me dizia que essas pérolas esperavam por mim ali. Cacei como um cão perdigueiro. Vasculhei tudo com calma e meu faro estava certo: havia sim muitos O Globo Juvenil - a partir do número 3. Somando tudo, peguei duas centenas dessas três publicações capitais para a história dos quadrinhos no Brasil.
Nas outras pastas, muitas fotos originais de mulheres nuas das primeiras décadas do século. Provavelmente prostitutas paranaenses ou paulistanas. Quem as tirou? Quando? Nada foi escrito para identificá-las. Num canto, pastas gigantes de material fotográfico abrigavam dezenas de folhinhas de pinups e garotas seminuas dos anos 40 a 80. Nenhuma dobrada, todas em perfeito estado de conversação, cuidadosamente organizadas.
Tudo isso rendeu nada menos que 13 caixas, que teria de amontoar num taxi (pedi a um desses serviços que atende por telefone para mandar um carro grande). Não deu e deixei parte das caixas separada e lacrada para pegar na semana seguinte. Enquanto isso, pensava cada vez mais seriamente em levar a coleção completa de Vamos Ler!, com 800 exemplares. Afinal, ali tinha muita coisa de J. Carlos, Raul Perdeneiras e Belmonte, entre outros grandes artistas do humor gráfico. Seu João disse que faria um preço camarada. Não pensei muito e pedi para separasse para mim e avisasse o comprador de Belo Horizonte que já estava vendido.
Você, que aqui me lê, por acaso acha que a minha aventura naquela casa acabou aí? Que nada. Estava apenas começando. Sempre me intrigou a informação repetida diversas vezes de que no porão da casa - com altura de pouco mais de um metro - poderia ter coisas guardadas. A intriga virou curiosidade: e se abrigasse nas suas entranhas um acervo tão fantástico quanto o que estava na parte de cima? Antes de mais nada, eu precisava de coragem para entrar naquele lugar, provavelmente habitado por ratos, baratas e escorpiões. Decidi que faria isso na semana seguinte.
O comprador de Belo Horizonte veio e levou muitas caixas de livros e revistas e outros objetos que não sei precisar. Mas não arrematou tudo. E voltaria outras vezes para novas aquisições. Mas, como disse lá atrás, a quantidade de revistas e livros naquela casa era algo muito além da imaginação de qualquer mortal. E impossível de ser realmente avaliado em pouco tempo.
Antes de dar prosseguimento à minha aventura e à minha entrada no porão daquela casa, vou aqui revelar a quem pertenceu aquilo tudo. Usarei a seguir as informações que seu genro colocou na Wikipédia - na verdade, fiz um copy do texto que ele me mandou, formatei e eu mesmo postei na enciclopédia virtual. Em seguida, acrescento algumas observações:
Aquela casa era do senhor Loris Foggiatto (1913-2009), artista plástico, fotógrafo e professor de desenho paranaense radicado em São Paulo desde a década de 1930 e conhecido pelas gravuras e quadros com nus femininos. O pai dele, Domingos Foggiatto, foi fotógrafo da imprensa oficial do Estado do Paraná e considerado muito adiantado para a época, pioneiro nas artes plásticas e na fotografia, além de proprietário de dois cinemas, teatros e circos.
Loris chegou na capital paulista em 1934, e logo foi trabalhar como gráfico do jornal Folha da Noite (atual Folha de S. Paulo), onde trabalhou até 1969, quando ele se aposentou. Ainda jovem, a veia artística herdada do pai apareceu e ele começou a fotografar o cotidiano de São Paulo - deixou em sua casa mais de 10 mil imagens entre ampliações e negativos.
Em meados da década de 1940, Loris foi aprender desenho na Associação Paulista de Belas Artes. Destacou-se como aluno dos artistas Inocêncio Borghese e Aurélia Cavalcante. Mais tarde, aperfeiçoou-se com os artistas Durval Pereira, Colette Pujol e Waldemar da Costa. Pela aptidão que tinha especialmente em desenho, logo passou de aluno para professor. Deu aulas de desenho e pintura por mais de 40 anos na APBA. Muitos pintores renomados tiveram aulas com o Professor Foggiatto.
Aliás, ele participou da diretoria da APBA por duas décadas. Deu aulas de nu artístico com modelos ao vivo, por varias décadas, quando o nu se tornou uma especialidade sua. Foi um grande apreciador da beleza feminina, produzindo uma enorme quantidade de desenhos e quadros que têm um traço especial evidenciando a sensualidade feminina, não explorando o erotismo.
Dentre os seus trabalhos premiados, podemos destacar o Salão Paulista de Belas Artes, onde teve cinco trabalhos premiados; Salão da Associação Paulista de Belas Artes (cinco prêmios) e teve mais 21 quadros premiados em diversos Salões de artes plásticas. Realizou também exposições individuais como na Galeria Itaú (1979), Hotel Hilton (1987 e 1990), Centro Cultural (1988) e Centro Cultural de Bertioga (1999 e 2000). Participou ainda de júri de 15 Salões de Belas Artes.
Seu Lóris, como era conhecido, morreu serenamente na casa da filha, numa cidade da região metropolitana de São Paulo, pouco antes do almoço familiar de um domingo, dia 22 de março de 2009. Conversou normalmente com todos e faleceu cercado pelas pessoas que mais gostava. Muitos lembravam dele como uma pessoa de temperamento forte, mas encantador como prosador. Adora cortejar as mulheres, que amava indistintamente e imortalizava em quadros. Tinha memória prodigiosa e histórias maravilhosas para contar. Cuidava de sua fantástica biblioteca com muito zelo. Reclamava se alguma faxineira tirasse qualquer coisa do lugar.
Ficara viúvo na década de 1980 e desde então vivia sozinho. Eu jamais soube da sua existência e tenho certeza de que se o tivesse conhecido, seríamos grandes amigos, a contar e a relembrar de histórias que ele viveu nos primórdios do século 20. Teríamos falado dos gibis pré-históricos, de sua amizade com o cartunista Belmonte, de sua paixão por pinups e mulher pelada, que também compactuo.
Ele, enfim, teria confiado aquilo tudo para que pudesse fazer novas pesquisas e escrever livros. Se nada acontece por acaso, talvez isso explique que o destino desse um empurrão e promovesse esse tardio encontro. Ele lá e eu cá, a zelar de suas queridas revistas para que isso se perpetue por muito tempo, pois nada, absolutamente nada, será vendido ou trocado.
Desde o primeiro dia em que estive no sobrado da Vila Mariana - ah, esqueci de dizer que fica na rua Umberto I, quase em frente ao começo da rua Pelotas -, eu ouvia a filha de seu Loris falar de um tal porão que havia ali, onde ela e, depois, seus filhos, brincaram por toda a infância. Havia da parte dela e do marido a suspeita de que no poderia ter mais revistas, uma vez que até aquele momento muitas coisas que eles lembravam não tinham sido ainda encontradas, como os 21 primeiros números de O Pato Donald.
As semanas passaram e estávamos em abril. Outros compradores apareceram por lá, mas ninguém se interessara em saber onde ia dar aquela pequena entrada de 1 metro por 60 centímetros, aproximadamente. Um dia, quando as chances de encontrar mais revistas preciosas pela casa começava a rarear, desci as escadas até o quintal, acompanhado da filha de seu Loris. Tentei olhar pelo cercado e vi apenas uma montanha de coisas velhas: frascos de remédios antigos, abajures, vasos, martelos, lâmpadas, reveladores de filmes, móveis quebrados etc.
Um metro adiante começava o breu. Consegui abrir a grade e visualizei uma pilha de revistas. Estiquei o braço e puxei com muita dificuldade. Tirei dois montinhos razoáveis. Eram os 100 primeiros números novinhos da revista Veja, sem qualquer indício de traça ou umidade.
Rapidamente comecei a tirar as tralhas e cheguei à Ilha do tesouro. Nos três metros adentro, havia montanhas de revistas. Preciosidades tão valiosas quanto as que havia tirado de lá de cima. O lugar era de difícil acesso porque tinha pouco mais de um metro de altura por um de largura - nessa parte havia um corredor, estreitado por largas prateleiras. Não pensei duas vezes e liguei para um amigo colecionador, cujo nome vou preservar aqui. Eu já havia comentado com ele sobre minhas aquisições e falei rapidamente: "Largue tudo que está fazendo, pegue um taxi e venha imediatamente para o seguinte endereço. Ah, e traga uma lanterna".
Não me perguntou nada. Imaginou do que se tratava e apenas disse: "Estou correndo praí". Em meia hora ele estava lá. Por que o chamei? Primeiro, pela amizade e pela gratidão. Depois, pelo tamanho físico. Eu tenho mais de 1,85m de altura e ele é baixinho. Tinha uma estatura possível para adentrar o porão até o fundo. E ele começou a me entregar pilhas e pilhas de revistas, depois de, pacientemente, tirar toneladas de tralhas do nosso caminho. Fizemos um pacto: cada coleção de quadrinhos dali retirada disputaríamos no par ou impar para ver quem escolheria primeiro. Ganhei a primeira e escolhi um montinho de Gibi Trissemanal, que incluia o volume 1, aquele com Charlie Chan na capa.
Foi quando tive um grande susto. Enquanto eu folheava aquelas maravilhas, o tempo passou e chamei por meu amigo. Ele não respondeu. Gritei várias vezes e nada. Entrei em pânico, imaginei que ele tinha desmaiado ou morrido devido a algum bicho que o picou ou por falta de ar. Os donos da casa vieram ver o que estava acontecendo e nos preparamos para chamar os bombeiros. Até que vi a luz da lanterna se mover lá dentro. E o sujeito apareceu em seguida, completamente imundo, para dizer que havia muitos outros quartos no porão com muitas revistas. Tinha também perto de 30 montes de jornais, sobre os quais falarei no próximo post.
A cada nova descoberta de gibis raros, ele gritava de lá, como se fosse uma senha. E começaram a sair montanhas de Pato Donald, Mickey, Tio Patinhas, Mônica e Cebolinha (Abril) desde o número 1, Pernalonga, Almanaque Disney, Diversões Juvenis. Enfim, boa parte do que a Abril publicou de 1950 a 1979.
Por cinco finais de semanas seguidos, tiramos coisas do porão. Isto é, revistas. Alguns exemplos: o resto da coleção de Carioca, Fon Fon!, Careta, Jornal das Moças, A Cigarra, Panorama e outras que eu tinha comprado e cujas numerações estavam incompletas. Tiramos de lá mais uma série do 1 ao 100 de Manchete, centenas de O Cruzeiro, inclusive os primeiros números, outra coleção de Quatro Rodas.
Num outro dia, colhemos centenas de exemplares da famigerada Seleções do Digest, bíblia do anticomunismo cristão ocidental. Num dos quartos dos fundos, esse amigo achou os 90 primeiros números do Pato Donald e os 50 primeiros de Mickey, mais Seleções Coloridas do 1 ao 17, considerada a primeira publicação da Ebal, de Adolfo Aizen. Não seria justo com ele, que tanto se sujou e ralou naquele lugar, dividir essas preciosidades no par ou impar e o deixei ficar com tudo.
Afinal, eu tinha encontrado maravilhas no porão, que também passei a explorar. Como um jornal de quadrinhos francês, que circulou a partir de 1902 - e cujo título vou ficar devendo porque seus volumes estão perdidos entre as caixas que ainda permanecem lacradas. E o alemão Allers Familj-Journal, cujos exemplares datam a partir de 1908. Todos em ótimo estado de conservação e que deixariam extasiados colecionadores e pesquisadores franceses e alemães. Outra descoberta: o Jornal do Lar, em formato standart (grande), dirigido a mulheres e publicado em 1932, mas que, na verdade, é um elo perdido da chegada dos comics no Brasil. Era impresso em cores.
Uma publicação que encontrei em grande quantidade em todos os cantos da casa, principalmente no porão e que eu tinha me esquecido de citar (como dezenas de outras), foi o semanário humorístico paulistano O Governador, que teve mais de mil números. A publicação circulou entre as décadas de 1930 e 1940.
Continuei a levar caixas e caixas para casa por meses. Mas havia no porão algo de muito valioso que, à primeira vista, não interessou a ninguém. Por causa disso, eu passaria meus próximos finais de semanas ao longo de quatro meses enfiado no porão daquela casa mágica.
De janeiro a agosto de 2010, poucos foram os finais de semana em que não passei pelo menos o sábado na casa de seu Loris Foggiatto, na Vila Mariana, São Paulo. Eu brincava com o amigo com quem dividia as buscas no porão que aquele sobrado era mesmo sobrenatural, como desconfiava uma parente do antigo dono. Afinal, saíamos para ir embora e, na volta seguinte, aparecia uma coleção de gibis ou uma edição rara num lugar onde nós havíamos vasculhado minunciosamente.
Perguntava a seu João se alguém havia estado ali durante a semana e ele garantia que não. Não tinha motivos para não acreditar nele, claro. Lembro do número 1 da revista MAD, da Vecchi, de 1975, que apareceu do nada onde sempre passávamos. Ou das novas pilhas de almanaque de farmácia que surgiam de vez em quando. Mas aconteciam surpresinhas normais como me deparar com algum exemplar do Globo Juvenil ou do Suplemento Juvenil no meio de cadernos de turismo, por exemplo.
Desde o primeiro dia, a filha de seu Loris falava que o pai havia sido muito amigo do cartunista paulistano Benedito Carneiro Bastos Barreto, o Belmonte (1896-1947), um dos mais importantes artistas gráficos do país na primeira metade do século 20, criador do personagem Juca Pato.
Se Belmonte morreu em 1947 e Loris trabalhou na gráfica da Folha nos 13 anos anteriores, devem mesmo ter convivido todo esse tempo nos corredores jornal. É preciso lembrar que Loris era um excelente desenhista e promissor pintor. Os dois, portanto, tinham interesses em comum. (Ironicamente, Belmonte morreria numa clínica que ficava exatamente na rua onde seu Loris passou toda a vida, a Umberto I). Sua filha afirmava com convicção que havia na casa todos os livros de Belmonte, mais uma pasta com coisas pessoais do artista - não faço ideia do que se trata porque a mesma foi adquirida pelo comprador de Belo Horizonte.
Só para situar, Belmonte reinou absoluto em seu tempo na imprensa paulistana, enquanto no Rio brilhavam nomes como J. Carlos e Raul Pederneiras - de quem ele era muito amigo. Publicou mais de uma dezena de livros - boa parte com seus cartuns relacionados à Segunda Guerra Mundial. Escreveu também volumes de crônicas e contos humorísticos (como o clássico "Idéias de João Ninguém", de 1935) e estudos históricos principalmente sobre São Paulo ("No tempo dos bandeirantes"; "Brasil de outrora" e "Costumes da América Latina"). Também ilustrou as obras infantis de Monteiro Lobato - foi o primeiro de muitos artistas a dar forma aos personagens do Sitio do Pica-pau Amarelo.
O artista passaria boa parte da vida no grupo Folhas - hoje responsável pelos jornais Folha de S. Paulo e Agora. Foi ali que, em 1929, Belmonte transformou em sucesso seu mais famoso personagem, Juca Pato, nas páginas da Folha da Noite. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele ganhou fama mundial ao usar o humor para combater os países do Eixo - Alemanha, Itália e Japão - e por tirar sarro das incoerências das três maiores potências do mundo - as capitalistas Estados Unidos, Inglaterra e a comunista União Soviética.
Nas minhas buscas pela casa de seu Loris, nada encontrei dele. Até que seu genro, gentilmente, lembrou-se que havia levado para casa um exdemplar de "A Guerra de Juca", com a reunião de caricaturas publicadas até 1940. Deu-me de presente, claro. Talvez tenha olhado no Mercado Livre o valor médio do mesmo, R$ 400, mas nada cobrou, em mais um de muitos gestos de gentileza desse ser humano único.
Minhas esperanças quanto a Belmonte renasceram no porão da casa. Seu Loris havia trabalhado na Folha de 1934 a 1969 e, de acordo com a sua filha, todas aquelas montanhas de jornais que ele ali havia depositado cobriam exatamente esse período. "Papai sempre chegava com uma pilha de jornais nas mãos e, como tinha mania de guardar tudo, colocava no porão depois que a gente lia". Sim, eu percebi que eram exemplares dos três jornais que o grupo Folhas publicou no período: Folha da Noite, Folha da Tarde e Folha da Manhã. O primeiro, mais popular. O segundo, elitista, existia para concorrer com O Estado de S. Paulo e A Gazeta.
Pedi ao genro de seu Loris para me deixar retirar daqueles jornais - boa parte devorada por cupins e traças - as páginas que tinham caricaturas e ilustrações de Belmonte. O ex-gráfico da Folha me deu uma ajuda sem querer. Ele havia separado perto de dez pilhas somente com os cadernos de domingo da Folha da Malhã, o "Suplemento", que tinha jeito de revista e que sempre trazia na capa exclusivamente um desenho de página inteira - tamanho standart, o maior de todos - feito por Belmonte. Um mais belo que outro, meticulosamente construídos a bico de pena.
Não mais que três tinham sido comprometidos pelas traças. No total, tirei de lá perto de 150 capas cinematográficas, o mais fantástico tesouro da história desse incansável cartunista. Só isso daria um livrão de capa dura de babar. Um detalhe: no meio há edições especiais com todas as páginas ilustradas por ele, o que totalizariam um volume de 500 páginas, no mínimo.
Eu olhei tanto aqueles jornais por tantos dias que me familiarizei com o esquema que deixava Belmonte como a estrela dos dois principais jornais do grupo. De segunda a sábado, ele publicava um cartum por dia na Folha da Noite. Na capa ou na página 4. Durante a guerra, por causa da repercussão de seus desenhos contra Hitler, ele ocupou metade de toda a capa em centenas de edições. No domingo, a Folha da Manhã reproduzia todos os cartuns da semana que saíram na Folha da Noite e usava seu traço na capa do Suplemento.
Dos cartuns diários, juntei perto de dois mil, creio. Desses, perto de 400 tinham Hitler como personagem - quase sempre a figura central. Eu, aliás, já escaneei todos e estou à procura de um editor para publicar um belo volume, sob o título CONCERTO EM DÓ MAIOR. Até descobri que uma querida amiga tem o telefone da filha dele, para que possa lhe pedir para autorizar a publicação. Outros temas recorrentes nesses cartuns eram a política nacional e os problemas urbanos de São Paulo.
Não sei o que fazer com o inacreditável acervo de Belmonte que reuni. Meus planos seriam, além do livro com Hitler como tema, um álbum de luxo com as capas do Suplemento da Folha da Manhã. Talvez arrisque uma biografia, mas só depois que Andrea Nogueira publicar a dela - aliás, ofereci-me para ajudá-la a encontrar um editor, o que faço no momento. Andrea é a maior autoridade em Belmonte no Brasil.
Tudo que relatei aqui sobre os mais de dez mil revistas e livros - além de incontáveis pastas de arquivos de folhinhas antigas (com pinups), recortes de jornais e revistas etc - que adquiri do genro e da filha de seu Loris Foggiatto me deixa meio frustrado porque, ao reler os posts anteriores, continuo com a sensação de que não consegui dimensionar essa experiência única que, creio, jamais se repetirá comigo e dificilmente com qualquer outro mortal.
Eu recordei tudo diretamente no espaço de redação do blog a partir de minhas memórias e, por falta de tempo, não consegui olhar o acervo ou abrir as muitas caixas e pacotes que ainda estão lacrados. Eu citei muito pouco do que levei para casa. As revistas em quadrinhos e de humor raras, as coleções completas de títulos de outras áreas, os cartões postais, as fotos (centenas ou milhares) originais de prostitutas nuas, as milhares de revistas eróticas que traçam um apanhado fantástico desse segmento - que seu Loris chamava de revistas brejeiras -, cada um renderia ao menos um post inteiro aqui.
E por que dar publicidade a isso na Internet? Exibicionismo meu? Quem me conhece sabe que não. O meu maior sonho é que tudo isso vá parar num museu ou arquivo público, numa instituição seriamente constituída, aberta ao público, onde pesquisadores possam estudar esse inacreditável material, com o devido cuidado e segurança que algo assim demanda. Seria um espaço com funcionários bem orientados que atenderiam esses visitantes.
Tudo isso ficaria à disposição para consulta por pouco tempo, por causa de sua fragilidade causada com o desgaste do tempo, pois meu projeto prevê que tudo seja digitalizado e acessado de qualquer lugar do planeta pela Internet, guardados os devidos cuidados sobre direitos autorais, se for o caso.
O maior obstáculo que imagino seria um órgão público topar manter no acervo as publicações de sexo, uma vez que o preconceito sobre o tema ainda é imenso, num grau de estupidez bem acima do que se imagina. Quando escrevi o livro Maria Erótica e o Clamor do Sexo, fiquei impressionado sobre o quanto é possível contar por meio dessas revistas e livros a história da sexualidade brasileira, dos costumes, dos hábitos e das tradições, da emancipação das mulheres, da repressão nos nossos regimes autoritários, da censura, do desejo de liberdade, da luta contra o machismo, da repressão ao sexo feminino em todos os tempos e épocas.
Assumo aqui a palavra de absolutamente nada cobrar sobre tudo isso que consegui juntar se aparecer alguma instituição com esses requisitos. Sim, desde que tenha a segurança de que tudo isso será realmente preservado ao longo de décadas e não simplesmente abortado por algum governante idiota, desses que destroem o que o anterior fez.
Que se mantenha esse material para que futuras gerações possam conhecer e estudar esse tempo - o século 20, principalmente - em que todas as emoções, sensações, desejos e fantasias de gerações de brasileiros passavam por uma folha impressa. Por muitas delas. Um tempo em que o olhar fascinado pela imagem, desenho ou foto, combinava com o toque tátil sobre o papel e o cheirinho de tinta da revista que acabou de sair da gráfica.
Sinto a presença de seu Loris no acervo que pretensamente assumi a missão de preservar. Vejo-me na obrigação de guardar um tesouro que ele por tanto tempo se empenhou em zelar - talvez para algum propósito que jamais saberei ou pelo simples prazer de colecionar. Seu Loris, na verdade, não era um colecionador, não saía por aí atrás de títulos para completar suas coleções. Ele apenas guardava as revistas que comprava e lia, com o cuidado de preservá-las das ações do tempo, dos insetos e roedores.
Na solidão da velhice, ao contempar tudo aquilo, é possível que ele se sentisse na companhia de velhos fantasmas de sua infância e juventude. Ou que passasse o tempo a folhear aquelas revistas como uma espécie de máquina do tempo dos melhores momentos de sua vida. De certo modo, ele estava preso àquele tempos idos, vividos, mas não esquecidos, como também fazemos ao recorrer a velhos discos ou aos gibis de diferentes períodos de nossas vidas.
Ao especular sobre a ligação de seu Loris com aquele tão fascinante mundo que criou ao seu redor, fico a imaginar que tipo de contato tomamos com objetos assim que, acredito, vão muito além do mero preservar para decorar uma casa ou por puro exibicionismo intelectual. Toda vez que leio um livro, por exemplo, passo a estabelecer com aquele exemplar e seu autor uma cumplicidade até mesmo familiar, diria assim, uma proximidade que jamais se concretizará, claro.
Daí sempre acharmos que somos íntimos de nossos autores preferidos quand os encontramos. Toda vez que leio um livro, bom ou ruim, nunca deixo de terminá-lo. E procuro guardá-lo na estante como algo com o qual criei uma relação que não acabará jamais porque alguns fragmentos ou a soma de muitos permanecerão em minha memória para sempre.
Assim sou eu e os livros, as revistas, os recortes, os arquivos, as pastas e as memórias dos outros, que capto por meio de um gravador ou pela ponta da caneta sobre o papel. Sou tentado a imaginar que o talentoso Loris - jamais reconhecido à altura que merecia como artista plástico - tinha um casamento eterno parecido dentro daquela caixa de lembranças e saudades onde viveu a maior parte dos 96 anos de existência. Não o admiro só por isso.
Marcadores: abre aspas, Gonçalo Junior, Loris Figgiatto
Impressionante. Mas espirrei só de ler!
Leitura totalmente prazerosa do começo ao fim, parabéns pelas aquisições, fiquei aqui babando pois sou colecionador de gibis, espero que algum dia aconteça comigo mesma coisa que aconteceu com você, encontrar gibis raros reunidos num só lugar, não teria como você enviar fotos do Globo Juvenil, Suplemento Juvenil, Mundo Infantil ou outros exemplares que você adquiriu? Abraços.
Olá, sou neta do Loris e queria te dizer que, com uma certeza quase que absoluta, ele deve estar muito feliz de ter "encontrado" alguém que tivesse tanto amor quando ele sempre teve pelas suas "velharias". Com certeza foi ele quem foi achando os exemplares mais legais e os colocou no seu caminho. Se algum dia tiver que abrir mão delas, por favor, não as venda, fale comigo que podemos tentar encontrar uma solução melhor. Assim como meu avô, acredito que isso tem que ser aproveitado! :) Boa sorte e felicidades com tudo isso que trouxe tanta alegria para o meu querido avô! Abraços!
Ola, sou neto mais velho do loris e tive o prazer de morar com ele por uns dois anos e sempre tive a vontade de explorar todo este acervo e entender qual era o motivo de tanta paixão.Ele chamava de "meus museus". Sempre tive noção de alguns destes "museus" podião valer muito e outros nada.Varias vezes falei para vender alguma coisa e ir viajar e etc mas ele não, curtiu "os museus" ate o fim.
Um amigo dele me questinou o porque que não transformamos a casa em um museu em sua homenagem ...mas a vida atarefada(dos netos) não nos permitiu este prazer.Torço que voçe não precise vender e curta toda esta aquisição como o loris o fez.Comercialmente acretido que a outras maneiras de explora-las sem simplesmente vende-las.Tenho certeza, que meu avo queria que este acervo fosse para pessoas que o apreciassem e pelo texto noto que caiu nas mão certas.
Parabens pelo texto e por manter o acervo relacionado ao nome Loris Foggiatto Peço que faça isso sempre, ele merece.
Fabio
Emocionei com a leitura.