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Jazz Loft



Um dia, em 1954, o pintor David X. Young passeava pela Sexta Avenida de Manhattan, bairro das flores, e achou um prédio de cinco andares, número 821, 120 dólares por mês, perfeito. Alugou o quinto andar e se mudou pro novo ateliê. Já no mesmo ano, dividiam o quarto andar o pianista e arranjador Hall Overton e o fotógrafo Harold Feinstein. No terceiro andar, o trompetista Dick Cary. O segundo era um depósito e o térreo, o restaurante Rainbow - depois a farmácia Herald, depois o Bernie's Discount Electronics Center, um alfaiate, um restaurante grego.



Todos os andares eram enormes espaços sem divisão, galpões, lofts. Construções residenciais eram raras na área, após certo horário só freqüentada pelas figuras boêmias - nada muito diferente da Lapa ou Barra Funda, por exemplo. Perfeito para músicos buscando qualquer pico para tocar até altas, artistas de hábitos excêntricos querendo criar em seus próprios fusos horários, fotógrafos atrás de espaço para salas escuras, mesas de negativos e sofás para madrugadas.



Naturalmente, jazz era o som dos cats e hipsters naquela época ("naquela época"), e no loft triplo até o pintor Dave Young ocasionalmente sentava no piano ou na bateria que haviam por lá. Durante o dia, alguns músicos podiam dar aulas e alguns alunos podiam ter a chave e passar a qualquer hora, mas era na alta madrugada que a coisa esquentava. Uma pra duas da manhã chegava o primeiro, aos poucos chegando mais e as sessions informais corriam longe, depois dos turnos oficiais pelos bares.



Em 1957 mudou pra lá o ensaísta fotográfico da Time e documentador obsessivo W. Eugene Smith, entrando no meio quarto andar de Harold Feinstein. Além de imediatamente começar a fotografar tudo e todos que iam, vinham, passavam ou cruzavam por ali, ele puxou fios por todas as paredes de todos os andares e microfonou tudo, gravando conversas, telefonemas, passos, sons da televisão, miados de seus gatos, barulho da rua - e milhares de horas de ensaios e jams com os músicos que lá circulavam.



W. Eugene Smith depois comentou que lá só havia duas regras: todo mundo que estava por lá respeitava todo e qualquer um que também estivesse, e qualquer barulho a qualquer hora era ok. Doze anos depois, quando se mudou, levou consigo 40 mil fotos (algumas ilustrando esse post) e quase dois mil rolos de fita - áudio recentemente digitalizado em mais de cinco mil CDs.



Big Brother tá suave e Twitter é fichinha. Entre as três mil horas de som que Eugene Smith gravou, você pode ouvir, por exemplo, um descolado chegando com uma gatinha e no xaveco a noite inteira, uma jam session com alguns dos melhores músicos da história pegando fogo e os gatos Desdemona ou Broom-Hilda miando na lareira - tudo ao mesmo tempo. Pode ouvir um jovem Steve Reich tendo aulas de piano ou Thelonious Monk, criando arranjos ou simplesmente andando de um lado pro outro. O famoso discurso de Martin Luther King na televisão ou o prório Eugene Smith, que era ligadaço em anfetaminas, trabalhando ou falando interminavelmente, dias sem dormir.



Entre os músicos e figuras que por lá tocaram, freqüentaram, ficaram, passaram Alice Coltrane, Joe Henderson, Roland Kirk, Bill Evans, Eric Dolphy, Zoot Sims, Chick Corea, Elvin Jones, Paul Bley, Hal Bigler, Carole Thomas, Ron Free morou um tempo lá dormindo numa cadeira reclinável, Sonny Clark acampou na escada e teve uma quase-overdose (devidamente registrada em áudio), além de centenas de músicos, artistas, agitadores culturais e figuras boêmias de que nunca ouvimos falar.



O projeto todo, assunto sem fim, foi encampado pela galera do Center for Documentary Studies da Duke University, que pegou todo o material do Eugene Smith e aos poucos vai desvendando o que há. Há pouco virou livro, The Jazz Loft Project. O áudio todo ainda estão decupando, mas já dá pra imaginar um box ou seleta do material pra daqui alguns anos.



No play acima, ótimo programa da WNYC fala de tudo isso. E essa semana, pleno carnaval, abre em Nova York expo com fotos e áudios (cê sabe, "multimídia"), registro de passagem pelo loft de gente como Norman Mailer, Salvador Dali, Anais Nin (que escreveu que sua noite lá "cristalizou sua visão do jazz ligado a um estilo de vida, outra visão da vida"), Thelonious Monk e todos citados acima.



O projeto é massa e o assunto é sensacional. (Desenvolvido por uma Universidade, abrindo expo na Public Library, programa legal na Public Radio...) Se não vier pra cá em nenhuma instância, já dá pra garantir a encomenda do livro.

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