RONALDOEVANGELISTA


música aleatória



Essa história do despedaçamento, como essa coisa pode surgir na cabeça da gente?

O cinema, por exemplo, é uma experiência de despedaçamento - que é uma forma de arte. Pra nós, que só conseguíamos entender a vida num continuum que era um por um - como se fosse um mapa, 1X1 -, a vida só era vivida de uma maneira que cada dia passa com 24 horas. No cinema, um mês pode passar em 15 minutos. Os romances também, as histórias. A primeira experiência do despedaçamento é a primeira história que o mundo viu, a história do poeta cego grego, do ano 10 mil antes de Cristo, a história da guerra de Tróia, a história de Ulisses voltando pra Ítaca; a Odisséia, de Homero. Então, a idéia do despedaçamento já estava no hipotálamo do cérebro do homem. Mas não sei assim proximamente de onde me veio a idéia, me veio da eterna curiosidade. Milhões de outras idéias não deram certo - idéias aparecem milhões, uma ou outra você consegue que fique sintaticamente acompanhável. Quando ela sintaticamente não toma forma, não acontece nada.

Eu também já tinha passado por uma escola de musica pós-moderna, onde tudo era tentado. Então de uma hora lá qualquer eu pensei que a gente podia fazer um ritmo de samba que era despedaçado, os acontecimentos que formam o corpo de um samba esgarçados, como se fossem jogados por acaso os componentes de uma fisionomia que acabavam formando outra fisionomia. Digamos, sete instrumentos são sete fisionomias. Se você pega um pedaco de cada fisionomia e joga de vez em quando pedacos de três fisionomias diferentes, formam uma nova coisa, como os franceses chamam, Bricolages.

Pensei na seguinte explicação: vamos dizer que eu escreva vários pedaços de música num elástico, depois amarre o elástico na parede e vá estirando. Aquela música é isso. É um samba, mas tocado aos pedacinhos, como se a partitura tivesse sido estirada. Eu passava dias e dias explicando ao Grupo Capote como é que devia ser: "olha, você toca o agogô, mas toca só uma célula de uma batida de samba e cada hora em um tempo diferente, você nunca toque igual essa célula no mesmo tempo depois." Cada célula sempre em momentos diferentes, de forma que ninguém pudesse esperar. Então, sete pessoas improvisavam. Aquilo foi um inferno, eu passei dias, semanas, meses: "toque assim, toque assado". Eu tinha fitas de gravador de rolo com horas e horas e horas de tentativa. Horas de improviso, de luta, de sacrificio.

Aí, veja o que aconteceu: aquilo estava esquecido na ocasião do Estudando o Samba. Um dia, quando estava na véspera de fazer o disco, estava ouvindo essas fitas velhas, trechos e trechos daquela tentativa, e de repente um pedaço me pareceu perfeito, me pareceu o que eu queria. Achei bom, continuou bom, continuou bom: um minuto e meio perfeito do que eu sonhava. Exatamente como está no disco, esse trecho que eu tirei, copiei e fiz o "Toc". Muita coisa eu fazia cortando fita naquele tempo. Então marquei o lugar na fita, levei pro maestro Briamonte e falei: "Bria, daqui até aqui escreva pra músico tocar, não vou chamar gente pra improvisar que vai ser milhões de horas". O Bria escreveu e a gente acrescentou aqueles metais.


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